PARTE II
As pessoas na rua, lá embaixo, sequer me percebiam sentado na janela do décimo oitavo. Eu as percebia melhor do que antes. Sentia seus coraçõezinhos de formiga palpitarem como o meu. Era outra vez como elas. Não dançava mais nas ruas sob o olhar dos curiosos: eu era um deles, despistadamente observando o beijo de um casal de apaixonados e sofrendo, ouvindo conversas no canto escuro de uma festa qualquer, divagando nas carícias discretas de namoradinhos colegiais num banco de circular. Todo saudade, lembrava dela.
Quando íamos as suas festas de família, me sentia um peixe fora d'água. Nunca tive classe, embora tivesse educação. Odiava tudo, muito certo, cheios de cerimônias, muito retos, disfarçando o rancor e o nojo de uns pelos outros. Encostava-me pelos cantos, mas ela não me deixava um segundo só, como se dissesse: eu sou você, estou com você. Se não gostam de você, não gostam de mim também. Eles me engoliam e ruminavam. Sabiam que eu era eu, separado, diferente deles. E ela, ela. Eu mesmo não sabia, não queria saber.
Entre meus amigos ela sempre esteve à vontade. Minha família eram eles, quem gostava de mim. Ela gostava de meus amigos mais que eu até. Os desbundados, os cabeludos, os loucos; aqueles que acreditavam em deus e que a terra ainda era chata, apesar de Galileu. Eu a deixava solta entre eles, onde ela não usava a classe que tinha. Não era como eu e se adaptava as circunstâncias e lugares facilmente. Dormíamos juntos no chão do mundo olhando pro céu, como Oscar Wild. Fumávamos e bebíamos cerveja quente e cachaça nos botequins de periferia até tarde. Sentíamo-nos livres entre nós e seguíamos como um bando de pássaros revoando entre as arvores e prédios e ruas e carros e outros pássaros, poucos, da nossa espécie. Diga-me com quem andas e te direi quem és... Pois ela era eu e eu, ela.
Os pardais estavam nas árvores intoxicadas da praça lá embaixo. Começavam o barulho do entardecer e o trânsito aumentava com o rush das cinco. Mulheres com suas bolsas nos pontos lotados de ônibus e gente. Gente que não olhava pra cima. As pessoas se acostumam com a vida cotidiana, olham pra frente e conhecem o caminho de casa ao trabalho. Não vêem detalhes, crianças com lindos olhos, belas cheias de frescor, pessoas tristes que não chamam a atenção, gente alegre assobiando soltas pela calçada, pombos, nada. Cruzam-se nas ruas e morrem no dia seguinte, sem que ninguém saiba suas histórias. Como eu. Aproveitava minhas últimas visões do mundo que me cercava, sem pesar. Não queria saltar ainda, queria sentir mais o ar, o pó que cobria a vida como um lençol cinza fosco. Senti na memória o cheiro de margaridas roubadas e as desejei uma vez mais.
As margaridas... Eu costumava rouba-las dos canteiros. Os jardineiros me odiavam, eu lhes destruía o trabalho. Mas qual é, senão emprestar sua graça aos poetas e apaixonados, a razão de ser e o sentido das margaridas? Todas as tardes ia encontrá-la e no caminho lhe roubava as flores e colocava algumas no bolso da camisa, levando outras na mão. Punha-lhe as flores nos cabelos e ela as punha nos meus. E íamos à praia caminhar descalços e em silenciosa cumplicidade. Quando chegávamos ao ponto deserto da praia, sentávamos e lembro de lhe tocar os seios e ela seguir minha mão com os olhos, mordendo os lábios, entregue. No segundo verão que passamos juntos, todas as margaridas murcharam nos canteiros. Só voltaram a florescer, minguadas, no fim do inverno. Mas já não tinham mais o mesmo cheiro nem ela as colocava nos cabelos.
Que eu lhe ame, que tu ames, que nos amemos. É um belo nome pra um prédio, Ames. Mas como verbo, se conjugado sozinho, devora. A tarde desabava rápido e uma chuva fria e fina começou. O vento aumentou um pouco naqueles últimos minutos. Talvez com a chuva alguém me percebesse ali. As pessoas olham para o céu quando sentem as primeiras gotas de chuva, como pra ter certeza do que é. E eu estava lá no topo, no céu do Ames, sentado à janela. Se alguém me visse, avisaria a portaria do prédio e em segundos eu teria que saltar, antes que a segurança do edifício chegasse. Ou não. Eu tinha tempo. A gente da rua, as cinco, só quer ir pra casa. Quando olhassem pra cima pensando no trânsito, nos ônibus apertados, na fadiga, desejando um banho e um beijo da mulher que encontrariam, talvez nem pensassem que me jogaria. Podia ser qualquer coisa, de vigia a um limpador de janelas destemido, fumando um cigarro com as pernas pra fora, setenta metros acima... Não! Se me vissem ali, rapidamente subiria o elevador cheio de pessoas de bom coração dizendo se importar e me pedindo pra não fazer, que sou jovem, que tenho muita vida pela frente... Pois se ouvisse algum barulho subindo, saltaria antes mesmo que me vissem o rosto convicto.
O vento jogava as gotas em mim e eu sentia a chuva, quase na horizontal, o frio da chuva na pele. Subimos uma vez uma montanha e passamos a noite sob uma chuva rala. Tudo lá em cima era frio, com exceção de nós dois. Via-se as luzes da cidade brilhando lá embaixo e não estávamos a sós. Ao redor estavam os amigo, música, bebidas e sanduíches de emergência. Nessa noite minha asma me atacou ferozmente e respirava com tremendo esforço. Ela reagia preocupada, deitada sobre mim ouvindo meu peito chiar como um gato e eu ria, ria, desesperadamente, e fazia gracinhas. Pedia pra eu parar e eu não me controlava, já alto de vodka e vinho. Rouco e sem ar, todos riam de mim, enquanto eu imitava Marlon Brando no Poderoso chefão. Respirava fundo o quanto podia e forçava: "agora quem manda é o Michael, estou saindo dos negócios. Daqui por diante, peçam a ele: Michel Corleoni". A beijava sem ar, não precisava de ar. Ela respirava por mim, era meu ar. Não achava que lhe exagerava a importância; Se pudesse, deixaria que ela vivesse por mim. E como eu amava a chuva daqueles, o cheiro e o frio da chuva naqueles dias. Amava tudo. No passado do verbo.
Não contava, não fui avisado, não percebi o tempo. Esse animal selvagem e silencioso que vive de devorar, que se alimenta de homens e criaturas da mesma forma. Seus vestígios, suas paixões, seus medos, sua história, tudo rói, lentamente, como os ratos e as traças aos livros e móveis e roupas velhas; ou nos engole inteiros e depois digere deitado ao sol, à maneira das cobras.
Olhei pro céu nublado. A noite não tardaria a despencar sobre as ruas e o mar outra vez, como todos os dias. Queria ver pela última vez as estrelas e o céu estava nublado; a natureza me deixara na mão. Traição!
Sim... Eu trai meu amor uma vez, por sexo. E quando eu disse, não acreditou que era apenas isso. Como todos os amantes, juramos ser sinceros sempre e não mentir. Mas diferentemente de todos eles, eu acreditei que isso era um voto real e possível. Não esconderíamos então nada um do outro. Uma noite, não uma qualquer, estávamos no píer e ela me perguntou se eu alguma vez já a havia traído. Eu repetia sempre pra ela que se ela deslizasse e me contasse, se não fosse importante, perdoaria. Se me dissesse que me amava. Entenderia sempre como fraqueza e não como desamor. Eu queria que ela pensasse que já que eu a amava a ponto de perdoar deveria fazer o mesmo e ser comigo como eu seria com ela.O ser humano é mesmo um poço de fraquezas, mas ela nunca me traiu. Eu sim. Trai meu amor uma vez, por sexo. E não hesitei em dizer-lhe a verdade quando perguntou; foi quando o tempo começou a nos roer.
Vi seus olhos abaixarem, num instante, e erguerem-se em seguida, já diferentes. Não me olhou nos olhos. Segurei sua mão e ela olhava o mar, perdida, como se suas palavras tivessem todas caído e se afogado no mar adiante. Eu disse que tinha sido fraqueza, que foi uma vez só, que não aconteceria outra vez e todas as outras coisas que aprendi vendo meu pai fazer, mas imaginei jamais precisar usar. Senti a decepção lhe escorrer pelos olhos e bater nas pedras úmidas de maresia, aos nossos pés; o calor de seu corpo fugir pra longe, pra onde olhava, pros cargueiros equilibrados na linha entre o céu e o mar. Tremia por dentro, todo, e não tinha o que dizer a ela. Morri ali, em minha língua e minha fantasia. Fiquei em silêncio com ela e a beijei. Ela aceitou friamente sem reagir. Não, não foi uma noite qualquer; foi minha última noite. Os dias que se seguiram foram mornos, depois frios e, por fim, todo o ártico se encontrava entre nós dois. Não saíamos mais de sua casa, não andávamos na praia, não subíamos montanhas, ela já não tremia quando minhas mãos a tocavam buscando calor. Sem conversas, carícias ou poesia. Tentei a todo custo consertar, mas respeitei afinal o fato dela não compreender. Também eu queria ter sido outro, mais forte, mas não fui. Deixei-a se afastar devagar. Não confiava mais em mim. Nem eu confiava; fraco. Havia traído sem perdão e meu coração ainda era dela, para minha derrota.
Não foi perdê-la que me derrubou, foi perceber que a havia perdido. Se aquilo entre nós acabava e tudo tinha um fim, independente de ser bom e grande e forte... Então tudo teria fim. Passaria a vida a tapar em mim os buracos de minhas felicidades passageiras, com pás de resignação e tristeza. O tempo nos consome e dura em consumir, muito mais que as pedras os barcos e os homens. Muito mais que qualquer história boa ou má.
Na mesa de um bar, em nossa última noite, ela escreveu um bilhete num guardanapo e o pôs sob um copo. Já não agüentava mais tê-la e não tê-la. Perguntei o que poderíamos fazer pra tudo ser como antes."Nada. O tempo não volta". Ela disse. Nos despedimos, bebi a ultima gota do copo e meti no bolso o bilhete. Não lhe dei um último beijo porque não podia, embora quisesse. Não havia como lutar contra aquele desabamento de nós. Outra vez eu era eu, e ela, ela. Algo que há muito não sentia. O bilhete: guardei na carteira a caminho de casa, sem ler. Pensei em queimá-lo sem saber o que trazia escrito; não importava, já que tinha acabado. De qualquer forma seria pior saber, como realmente foi.
No dia do seu aniversário, aflito, decidi por fim atear fogo no bilhete e o li antes de queimar. Estava escrito: "Te amei cega e indiscutivelmente. Ainda te amo, não mais cega, mas ainda indiscutivelmente". Então tinha jeito! Eu é que não lutei o bastante, pensei. Corri pro telefone e liguei pra desejar feliz aniversário. Esperava que ela reagisse de alguma forma, depois de tanto tempo, que dissesse querer me ver, como eu a ela. Ela ainda me amava, eu sabia. Só ouvi sua voz, metálica e dura, saindo e se perdendo entre os sons dos carros e dos transeuntes, gélida como o espaço, atravessando os quilômetros de fios e antenas que nos separavam. Nem sinal do verbo amar. O tempo, a tudo apaga e rói.
Na próxima vida seria um pássaro, ou uma estrela, ou um rato a roer as casas e os livros dos homens; Nessa não podia mais ser nada além do que fui. Não sabem do tempo, nem do desgosto, nem da finitude das coisas, nem guardam boas lembranças pra lhes doer em dias ruins; são eternos enquanto existem sem saber e apenas voam e brilham e roem enquanto podem, sem futuro, passado. Sem histórias.
Do alto do grande prédio rosa á beira do mar o mundo era igual. Nem meu sentimento diminuía, nem o ar era rarefeito, nem me senti mais perto de deus, nada. O pequeno universo ao meu redor estava, igual, apenas visto de cima. Que eu amei, tu amastes, nos amamos... Aprendi a conjugar no passado esse verbo. Tirei do bolso o bilhete e meu Zippo, e queimei. Acendi um cigarro nas chamas do bilhete e posso dizer que eram iguais a todas as outras, sem nenhum sinal de amor; como as chamas de uma bula ou uma nota fiscal. Acendi o cigarro e olhei pra cima, pras nuvens que insistiam em cobrir o céu. Queria mesmo ver as estrelas. Mas não queria mais esperar, não podia mais esperar o céu se abrir.
(Ecoporanga, 02/04/99 - Vitória 15/09/04).