terça-feira, novembro 23, 2004

12/11/04, NOITE (A. Lacruz)

Contava já mil e oitocentos tecos o relógio a que me propunha, segundo ritmado ao estalido do polegar batido contra a poltrona. Ainda esperava. Bom é atormentado por assunto que exija a reflexão bem meditada, viajar prolongado no marasmo do ônibus, mas não há nada que me ocupe, a saudade devora e engolido pelo tempo o conto para distrair. Por volta da 4800º badalada, – sei lá o ordinal – ou seja, só lá pela uma hora e vinte que marcava, foi que avistei a cidade beira mar, a costa respingada por vapores de mercúrio e janelas acesas, de Iriri ao longe, no fundo enuviado.
Desci do ônibus com os tics estourando na cabeça; trafeguei somando os números, sem perder a conta inexorável, fixada pela repetição e porventura, pela curiosidade da eficácia do exercício de concentração tão obstinada. Bem, vejamos, 5407 5408 dividido por 5409 sessenta.... é...5410...5411... – Adianta agora eu saber que foram precisamente noventa minutos se não pude conferir com o relógio G-Shok a hora que se interpunha entre eu e o bar. Não venha o leitor a pensar que saudade eu tinha era de lá, como mô disse a Mi, brincado de indignada. O boteco é a alma do único resto da boêmia que resta à cidade.
Pedi para colocarem o disco do Caetano que trazia. Foram as duas doses de cachaça e o preenchimento da cena pela música o suficiente para que me acomodasse de vez na versão cinematográfica da mesma vida. Veio um baixinho chato que eu já conhecia antes mas não lembrava o nome e me deu um tapa no ombro "Caetano Veloso, né?" pra puxar conversa "Gilberto Gil, Chico Buarque" disse ele saindo pela porta, sem recepção maior que o meu consentimento ao balançar a cabeça. "É, legal" O cara voltou. "Adoro MPB".
A música agrada. O reizinho do umbigo acaba dar luz ao neologismo caetanequização quando gritam do fundo "Põem um pancadão aê, ô". Pancadão, batida, tum, tum, legal, mas àquela afronta se esvaia a boa acolhida que pensei. Mal olhei para traz, o cara jogando sinuca adiantou "Não leva a mal não" "Que isso, tomara cada um tenha seu próprio gosto. Mas talvez se você aceitasse a música com um mínimo de abertura ela te tocasse. Disse o Caetano há pouco que é sem dúvida sobretudo o verso o que pode lançar mundos em um.
Tropeçavas nos astros desastrada, quase não tínhamos livros em casa e a cidade não tinha livrarias; não escapa demais ao contexto do cara? É possível que fuja à compreensão, o cotidiano poético do Caetano.
Mas pelo talvez mantive o discurso intacto . Matei a dose de cachaça, peguei o disco e dei rumo ao destino. Dos tics já não me lembrava, não sentia mais a força estranha.
Após tocar duas vezes a campanhia, pergunta pelo desconhecido uma vozinha irreconhecível vinda do segundo andar. "Surpresa amor! Engenhos novos!" o entusiasmo para tanto um pouco se quebra sem saber a quem se fala. "Ariel" a voz rouca que parece uma ave grave. " "Quem é?" "Ariel". (Música incidental nº 02: O chiado do chinelo desce a escada. Para. O molho de chaves balança). "Oi Ári (A criança canta), a Mi tá no banho".
A Minobanhosemtrancanobanheiro apetita mas também não recebe e a saudade, mesmo que próximo, prossegue. Entrei corredor dentro até a varanda para fumar cigarro e ouvir Roberto Carlos, não achasse o ZéMaria sobre a caixa de som. Na varanda venta muito e o cigarro acaba rápido o que me obriga a imediatamente acender outro, mesmo que por um terceiro olho a fotografia fixada nas carteiras de cigarro advirta. Não trata-se de compulsão, é que a taxa que necessito de nicotina não é suprida se o cigarro acaba rápido, Porra!
Onde está você? Onde está você? Nada mais acontece e eu não tenho ainda o desfecho dessa história. Esperava sentado na murada da varanda por um acontecimento extraordinário com o qual finalizaria o relato de forma que ligasse-se ao inicio e assumisse a forma cíclica que pretendia, mas a rua deserta não oferecia nada.
(Cerca de dois minutos depois)
Than Tchan:
Cheio de inspiração caminho até o banheiro, convicto de que faço eu mesmo o Grã finale. Empurro a porta do banheiro que nunca é trancado, e me apresento de surpresa. "Ei Mi" Ela nua com o sabonete na mão. "Vim lhe dar um beijo que escapou-me".

A. Lacruz

segunda-feira, novembro 22, 2004

A Revelação Póstuma de Audric (G.Saraiva)

Capitulo 1
A revelação póstuma de Audric

Aimée matou-me três vezes. Soube-se, mais tarde, que o motivo fora a morte do amor. Aimée nunca amou, resignou-se em cobiça púbere. Pobre criança. Pertenço àqueles a que a até a morte se esquece, sou um desalmado! Tenho uns poucos amigos assim, mas isso, agora, não vem ao caso, trato aqui de minhas três mortes, ou ao menos, uma delas. Decerto Fui por algum tempo a personificação do vício. Intempestivo; há em mim toda a dor do mundo, como em Carolina, como em Chico...
Pensávamos que pudéssemos continuar, apesar do desgaste, doía-me o estômago. O álcool e o tabaco eram-me venenos impetuosos. Humores hostis assombravam as vestes, estas por mais corriqueiras, pareciam, ainda assim, abalar o mundo. E cercado de cães infames não se pode fazer muito.Resolvo dissolver tudo num imenso protesto. Prestar-me-ei à desvalia dos ingratos, quem, por favor, absorveria o terrível sangue de minha boca? Poderia alguém, amainar-me as fagulhas do desprezo? Não confio nem mesmo em mim, seria eu assim tão facilmente embriagável?
Aquelas pobres garças, novamente, trariam novas esperanças a meus dias. Ou seria eu um velho, ultrajado pela vergonha da imaturidade do alto de meus 55 anos embotados de pó e ferrugem? Por simplesmente não ter feito o que queria, ou vivido – como se isso me fosse possível – de outra forma? Desde já, morro, para ridicularizar os anjos. Renasço para estupidificar demônios. Deveria, Aimée, prestar-me um imenso favor: matar-se! Uma vingança às avessas pelo meu assassínio; tudo isso é tão angustiante quanto pensar no acaso de meu não-nascimento, se seria eu outra pessoa que não este velho, sim, Audric, o Velho. Mas Aimée vive para atormentar-me a memória, cacetear-me o espírito já estupefato e edêmico, e tal convivência tão repugnante – que vos narro, oh pacientes leitores – ainda não basta para alma tão sádica.
Se já não estivesse morto, gostaria tanto de embebedar-me um pouco, mas temo que até isso seja demasiado entediante. Daqui ouve-se claramente correntes que se arrastam, ouve-se o grito dos infiéis. Toda a sorte de gemidos incongruentes clamando remissão. Sinto que tudo aparenta mais calmaria, agora, o dia soçobrou a noite agourenta. Um novo amor demanda ação. Mas eis que me pergunto: o que é o homem senão um punhado de dores, e, amores mal resolvidos? Desconheço a causa do eterno, prefiro a redescoberta do tempo, antes, caduco. Perdem-se numa visão delimitante, os que se atem a medíocre concepção de se encerrarem em si mesmos, como um narciso excessivamente mórbido.
Pelo pavor da pequenez, declaro me antinominal, sou o dionisíaco – artista incompleto e narcisista – contra o apolíneo, ao menos me admito; quero esta morte desfigurada que ri, andrógina, como querem a vida mesquinha. Ofereço o Dabucuri a meus amigos inexistentes. Queres amor? Ofereço alucinações e cigarros. Ando de mãos dadas com Oswald, julguem-me!


sábado, novembro 20, 2004

De como Deus lambe o copo(Gauche)

Ontem encontrei Deus tomando um conhaque no bar do Kim Caveira. Olhou pra mim como se sentisse reconhecido, deixando um meio sorriso transparecer nos olhos avermelhados e pouco visíveis. Sentei à sua frente, olhando-o com o carinho de quem surpreende um velho amigo longe de sua rotina. E esperei que ele tomasse outro trago:
- Como me descobriu? – ele me perguntou depois de pousar o copo sobre a madeira gasta da mesa.
- Pelas marcas de nuvens carmins nos dedos - respondi sem respirar – é a mesma cor que o Senhor usou hoje, na tarde.
- Pois é! Ainda bem que não tem muitos poetas por aqui, senão, estaria fudido. Aceita um conhaque?
- Só se o senhor prometer que não vai deixar minha úlcera doer depois.
Ele riu, e fez sinal ao caveira para que nos trouxesse novas doses.
- Desde que você não misture com cerveja... – e vez um gesto ébrio de benção.
- Você continua só pintando? – perguntei.
- E coçando o saco – disse rindo depois de secar seu copo. E acrescentou – Jesus
cuida dos negócios esplendorosamente bem. Já não é mais aquele revolucionário sonhador e romântico de milênios atrás. Caralho!, até hoje ainda tenho que ouvir reclamações a respeito de promessas absurdas que ele fez à esse povo inocente. Agora ele aprendeu que essa coisa de satisfazer vontades de pessoas que não sabem o que querem e trabalho de outros departamentos: prefeituras, igrejas, inferno...
Caveira aproximou-se com as bebidas. Passou um pano úmido para tirar o excesso de marcas de água deixadas pelo copo de Deus e saiu cantarolando um reggae.
- Deus, porque que o céu é azul?- perguntei depois de sair da cara feia, provocada pelo o conhaque que desceu queimando.
Ele riu com a boca ainda cheia, fazendo esforço para não cuspir, sorveu o líquido com paciência e voltou-se pra mim com candura:
- Engraçado!, ontem um coelho me fez a mesma pergunta. Só que em vez de azul, rosa choque.
- Rosa choque?!!!
- É, os coelhos são meio gays.
- E os padres também, né? – acrescentei às gargalhadas.
- O pior é que é! – ele consentiu com certo constrangimento.
Uma negra muito bonita se aproximou dele e cochichou em seu ouvido algo que o
fez corar:
- Eu também te amo, mas se você beber mais , vai...
E falou-lhe em surdina alguma coisa que deu à ela uma expressão de
arrependimento e angústia. A negra nos deixou cabisbaixa e ganhou a rua com uma velocidade parecida com o desespero.
- Veja bem – recomeçou – para me poupar trabalho, eu criei tudo com seu próprio sistema de criação. Então é só da corda que as coisas avançam em princípios parecidos com os meus. Assim, tudo que você vê, é a repetição de um eco que vaga em suas entranhas desde o sopro primordial. Mas tem um detalhe, os outros não vêem o que você acha que está transmitindo. Nisso Eu fui sacana. Há um borrão nos olhos, quase todos, que transfigura a imagem emitida, é uma espécie de ilusão, assim, o que se vê, geralmente, é o contrário do que é na verdade. Entendeu?
- Não.
- Os negros, a maioria, são pessoas muito claras; os anões, são grandes homens...
- E o céu então é vermelho? – eu disse, fazendo cara de quem descobriu o segredo
de todos os mistérios.
- Seu problema é que você não sabe beber! Confunde-se à-toa. É claro que o céu
não tem cor.
- E essas marcas carmins no seu dedo então?
- Puta que pariu! Como você é burro. Não tá vendo que minhas mãos são de
pintor porque você não sabe pintar. Tudo que não se pode ter parece divino. O homem sempre criará seus céus e infernos a partir de seus medos e desejos. No paraíso dos evangélicos tocará hinos o tempo todo, no seu inferno também... Compreendes companheiro!
- Então por isso que o Stephen Hawking é feio daquele jeito? Só porque é mais inteligente que todo mundo?
- Não. Aquilo é uma sacanagem que fazem com o coitado. Há muito tempo que ele não passa de um monte de carne torta que não consegue reagir a nada. Mas uns ingleses que não querem ser responsáveis por tanta informação insegura, insistem em usá-lo como testa de ferro, assim como os católicos fazem com o Papa. Se os infelizes pudessem gritar...
- E você permite isso assim!
- Se eu interferisse, o Hawking morreria por não conseguir pedir esmolas e o Papa
é um castigo mesmo, ser conivente com um sistema daqueles!, vê se pode?
- Porra Deus, o Senhor é foda mesmo! Me paga outro conhaque.
- Só se prometer que não vai dizer nada do que te falei aqui. Ou então sua úlcera
nunca mais melhorará. Promete?
- Claro! Sou seu fã.
- Oh Caveira! Mais dois conhaques por favor!
- Com gelo e limão? - perguntou Kim Caveira em sinal de prontidão.
- Que merda!- resmungou Deus – ele parece que quer testar minha paciência. – e depois num tom alto e cheio de graça - Não, meu filho, purinho, purinho!

j. gauche

sexta-feira, novembro 19, 2004

Lenços de Papel (Ixo)

Amor... Estava no meio da faxina, lá em cima, com o nariz escorrendo da poeira dos tapetes que batia, quando tocou o telefone...
-alô! Sniff, sniff...-o nariz ferrado.
-alô, aqui é o Leonardo, da Revista Oi Voz, eu gostaria de falar com o Sr. Dante.
-Oi vó?
-Voz!
-Ok, ok... Em que posso ajudar, Leonardo? Sniff...
-Estou ligando sobre a sua banda, o Solana. É sobre o "Voz das Bandas"...
-Como? –o nariz escorria, eu não estava entendo direito o que ele dizia, sabe, amor...? –Não estou me lembrando Leonardo, pode me clarear as idéias?
-Olha, vc tem uma banda chamada Solana? Então, seu nome e telefone estão aqui para contato no cadastro. Você é o Dante?
- Sniff, sniff, sim, sim, sniff - não agüentei o nariz. Procurei por uma camisa à mão, mas não achei. Não ia ter problema, estava lavando roupa. Nada:
- Pode me, sniff, dar um minuto Leonardo? – nem esperei a resposta e corri pro banheiro. Deve ser mais um querendo falar sobre aquele episódio do congo é o caralho, pensei enquanto enxugava o rosto.
-Pronto Leonardo, pode falar.
Ouvi o suspiro de alívio do rapaz por poder finalmente:
-Pois bem –pausadamente -liguei para comunicar e queria dar os parabéns, pois sua banda foi selecionada entre as cinco finalistas do Festival Nacional Voz das Bandas, realizado pela Revista Oi.
-Oi?
-Sim!!! Gostaria de gravar uma entrevista agora, pro portal, o Sr. Pode?
-Ah?! Sniff, sniff, sniff... –Não havia como conter as fungadas. Escorria. Se você estivesse, te chamava e me acudia, ou haveria lenços de papel. Você sempre lembra os detalhes. Continuei, com voz de catatau, entupido:
-Bem..., Sniff, sniff, Leonardo... Você pode me dar cinco, sniff, minutos?
Desliguei e corri outra vez pro banheiro refazendo a lista de compras na cabeça:
13- Azeite
14- Mariola
15- Lâmpada
16- Bacon
17- Lenços de papel.

sábado, novembro 13, 2004

Ajuda do vizinho (Ixo)

Xícaras de açúcar e intimidades com vizinhos eram algo tão longe da sua realidade quanto o cubismo, a guerrilha armada e a mitologia grega, mas naquele dia, naquele maldito arroubo aventureiro, se meteu -sozinho como sempre -naquela restinga arenosa e suja, descalço da praia; e encheu os pés de espinhos de cactos. Daí, já em casa, depois de ter aprendido uma nova ortopedia pra andar e dirigir sem se machucar mais, remeteu-se ao estereótipo da xícara de açúcar. Não gostava mesmo. Estavam, os espinhos, num ponto cego do pé. Contorcia-se; pegou uma agulha e sentou-se no chão; teria mais mobilidade. Não alcançava mesmo. Segurou com força, torcendo o calcanhar até encostar abaixo do umbigo: por dentro não dava. Inverteu a posição e revirando-se, olhava o calcanhar nas costas. Molhou os dedos no copo que repousava na mesinha baixa e esfregou. Dava pra ver melhor assim. Nas primeiras agulhadas sangrou e não viu mais espinhos. Molhava mais os dedos, mas estava tudo vermelho. Impossível. Andou até o banheiro, marcando um tapete no caminho; lavou os pés. -Saem, basta inflamar -pensou. Podia esperar. Usaria creme de amendoim. A inflamação não demoraria mais que uma tarde. Fez um emplastro quente e esperou, sentado. Quis ir a geladeira e não pôde. Saltou em um pé só. Mas foi quando caiu entre o banheiro e o quarto, decidiu por recorrer ao vizinho.
-Tenho que levar um presente, algo assim. Mas depois de seis anos, parece bizarro demais -Seguiu saltando em um pé só até a cozinha.
-Não, não -encontrou um pacote de frutas peruanas secas, mofando bem no fundo do armário; vestígio da visita surpresa de tia Lenir, em março. Sacou de uma receita para turistas colhida num livro, presente de alguém que imaginou que gostasse dessas coisas; faria uma sobremesa. Substituiria os ingredientes que faltassem. As frutas peruanas secas, iogurte light e muita calda. Era bem hora do jantar. Se fosse rápido, daria tempo. Uma hora depois saltou até a porta do vizinho, duzentos metros adiante. Atendeu a senhora:
-Sou o vizinho aqui do lado... -ela sorridente:
-Eu sei. Entre, estamos acabando de jantar.
-Trouxe para vocês. Fiz dois... Imaginei, por quê não...?
Soltou um sorriso engasgado e frouxo e segurou o mancar.
Sentou-se à mesa, negando o convite para jantar, obviamente. As pessoas, quatro ao todo, dissimularam a estranheza da visita. Tentaram puxar assunto, ele manteve-se reticente. Assim que começaram a comer a sobremesa –e ele mesmo havia provado, sem meter o dedo é claro, para assegurar-se que seria um verdadeiro cavalheiro –colocou em prática o plano:
-Desculpem...Onde é o banheiro?
A mulher exibia total contentamento com o doce; Lambia os lábios. Apontou o caminho, ele saiu, acentuando o gemido. Deu por si do ridículo. Devia desistir daquilo. Agora que havia entrado na casa, sem um motivo aparente, como pediria? Se oferecessem, se ele conseguisse isso. Voltou do banheiro mancando ainda mais, e sentou-se.
-Aceita um café, uma bebida? -negou. Depois disse sim. Tinha que ser gentil. O calcanhar latejava. Levantou-se e caminhou na sala, lentamente. O dono da casa o acompanhava intrigado os gemidos, enquanto a mulher havia entrado casa adentro:
-Sempre fomos curiosos ao seu respeito. Entra de carro pelo portão, sai de carro pelo portão... -mantinha um tom agradável.
A senhora se aproximava trazendo o café e ele se levantou pra receber, num gesto já desesperado de dar a entender a dor. Enfim, a pergunta veio:
-Tem algo no pé?
“Maravilha. Agora ela se oferece pra tirar e em dez minutos estou livre disso” -concluiu.
-Sim, sim! Pisei nuns espinhos na restinga, e não consegui tirar... Dói bastante...
O casal se entreolhou.
-Quer que te levemos ao pronto socorro?
-Não, claro que não, obrigado -Esperava que a mulher dissesse algo como “posso tentar?”, mas nada. Ficou de pé para colocar a Xícara na mesa e gemeu mais.
-Deixa eu ver? -ela pediu. O marido pareceu surpreso com o gesto e olhou repreendendo, mas ele ignorou e começou a tirar o sapato, já se dando por vitorioso. Quando ela visse, certamente se ofereceria pra livrá-lo dos espinhos. Ela olhou como que concentrada, cerrando um pouco os olhos:
-Tem certeza que não quer que lhe levemos ao pronto socorro? Parece estar feio...
-Não, quer dizer, sim, tenho certeza, está tudo bem. E vou-me indo já. Obrigado pelo café... Só vim mesmo me apresentar... -sem desculpas ou argumentos, correu o olhar até a porta.
O pé balançava em sinal de tensão, de pernas cruzadas, os dois estudando-lhe sem compreender. Era um rinoceronte num McDonalds, pensava. Não iria pedir. Seis anos ali, sem nunca dizer sequer olá; não ia mesmo. Rinoceronte...
Saiu entre os agradecimentos do casal confuso e foi pra casa, saltando num pé só, doendo. Dirigiu com dificuldade até o posto de saúde, onde uma negra com grandes dentes lhe atendeu, enquanto repetia mentalmente:
-Egoístas. Se era pra pagar pronto socorro, não desperdiçava as raras frutas de tia Lenir...

Dante Ixo
Fradinhos, 13 de Novembro de 2004.

terça-feira, novembro 09, 2004

Náufrago Escocês (Ixo)

(Baseado no “Conto em letras garrafais” de Marina colassante.)


Era branco, baixo, típico escocês. Usava uma barba bem aparada até o naufrágio e a manteve, descuidada pela falta de navalhas, até a morte.
Capitão do navio, foi abandonado pelos marujos, que lhe roubaram os botes e fugiram antes –Que morresse, afundasse com a nau, já que era o capitão.
A carga: doze mil garrafas de rum e uísque que lançou ao mar com as caixas, para emagrecer o navio. Saltou depois, só com os braços, quando o último mastro ia a pique...
E chegou em terra a nado; antes das garrafas.
O fato é que a partir daí, por tempos, diariamente esvaziava no gole uma garrafa e metia-lhe gargalo adentro um pedido de socorro, lançando em seguida ao mar, com embriagada esperança.
Nenhuma resposta.
Ia-se o tempo, iam-se as esperanças; Assim como o tempo, estas também não voltavam.
Esgotou-se seu alcoólico repertório e a esperança esvaiu-se. Mas meteu-se, já pelo vício, a escrever poemas e lançá-los às ondas, como fizera antes com os monossilábicos pedidos de socorro.Escrevia um poema, esvaziava uma garrafa; antes que acabasse a primeira, vinha-lhe outra inspiração; matava num gole e esvaziava outra garrafa. A cada garrafa, outro poema; a cada poema, outra garrafa...
Sua vida de poeta durou um tempo. Pouco. Cantou o mar, os coqueiros anões, as gaivotas, os grilos da noite, suas saudades, os destroços do navio espalhados pela praia, as amoras, o rum e o uísque.. Escreveu-os aos milhares, ininterruptamente até que enfim esvaziou a última das garrafas que as ondas haviam trazido à praia. E morreu. Sem ter tempo de meter garrafa adentro a obra de sua última e derradeira inspiração.
Naquele momento ancorou, do outro lado da ilha, um navio das frotas escocesas. No bolso do jaleco do comandante, um poema que exaltava as coxas de uma dançarina francesa do passado. No fim da folha, à direita, as coordenadas da ilha e a assinatura:
“Capitão Willian, poeta de vossa majestade”.

V. Velha, 21, Nov. 1995

Monólogo da Árvore (Ixo)

Tombaram muitas ao meu redor; ainda assim, cresci aqui. Não sei se me poupam porque apenas observo em silêncio; ou sequer me percebem em minha insignificancia desfolhada.Como nunca vi apaixonados, nem em minha casca gravaram qualquer coração ou jura, julgo que não me poupem por amor. Tampouco por minha sobra pra ninguém e minguada. Não me entendo. Permaneço aqui e aguardo que um raio me parta, ou o relógio vire-se ao avesso, acordando meus irmãos que desceram gritando; Não me lembro quando, 20 anéis atrás... Apenas permaneço... Nem lembro quando aquele galho se partiu, mas lembro quando choveu depois e eu cresci. Aquela mancha avançava lenta em minha direção, como ainda avança. Nessa época eu já avistava lá embaixo, sem entender.

Dante Ixo
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Outras apropriações e resumos:Diário do OVNI.

Ames, 18º Andar (Ixo)

Do alto do prédio rosa à beira do mar, a visão do mundo não era diferente de quando peguei o elevador. Nem minha angústia diminuiu ou aumentou, nem o ar era rarefeito. Apenas via aquele pequeno universo do qual me acercava todos os dias, de outro ângulo; do alto; do décimo oitavo andar do prédio rosa à beira mar.
O edifício, muito mais velho que eu, como é comum no centro, servia há muito por seu fácil acesso e largas janelas, aos desesperançados e sofredores; os que precisavam de atenção e não encontravam. Isso levou os administradores a gradearem todas as janelas do prédio para evitar suicidas e doentes da alma. Eu tinha acesso e tudo não impediu que eu estivesse ali, com o corpo pendendo pra fora, sentado na mais alta janela sem grade do Ames. Chamava-se edifício James nos anos setenta. Antes do fim da década, muito mal cuidado, perdeu o grande "J" de ferro do nome, que se desprendeu da fachada e foi roubado de manhã, dizem que por um carrinho de ferro-velho. Demoraram tantos anos pra mandar fazer um novo "J" que as cartas começaram a sair e chegar no prédio com o novo endereço: edifício Ames, sem a letra perdida. Por fim, os condôminos, por apego ao sugestivo novo nome e aversão aos estrangeiros, aquela raça que infestava a região do porto, como bons representantes do espírito da ilha, impediram que a letra fosse recolocada na fachada e ainda mandaram fazer um "A" maiúsculo. Isso foi no início dos anos 80 e conjugaram um verbo naquela fachada.
Nunca fui bom com verbos. Meu forte são os substantivos e adjetivos, mas, infelizmente, não existe ação sem verbos e eu pensava na conjugação do verbo amar. Que eu ame, que tu ames, que nós nos amemos... Não vingaria explicar. Até que ponto tal sentimento pode enrodilhar, nos deixando alheios ao controle de nossas intempéries, em sua teia de fogo e perfume? Que eu ardesse no inferno, mas coloquei friamente, sem que nenhum arrepio tocante me afligisse, as pernas pra fora da janela. Fixei-me no filete de mar que separava o porto do outro lado do canal. Ali o mar tinha fim, como um rio; o horizonte era terra firme, o lado de lá, o continente. Aliás, tudo ali tinha fim; eu tinha. Cometia o erro de fantasiar, vestir pessoas de divindades perfeitas e o tempo que tinha de infinito... Quando tudo é breve e tem fim, diziam à época do mal do século. Disperso na visão do canal escuro voltei-me ao princípio, refazendo as lembranças, como se por algum momento tivesse deixado de fazer isso, não para encontrar uma desculpa pra não fazer o que planejava, mas como para reafirmar minha convicção.
Que eu ame, que tu ames, que nós amemos... Numa não qualquer primavera -e não poderia ser outra a estação ¿encontrei-me em uma casa estranha, uma casa de estranhos, a convite de um amigo. Hospedei-me nela com ele por alguns dias. Na verdade, acho que nunca mais sai de lá, que lê dei meu ultimo suspiro. Todos aqueles móveis velhos misturados com novidades, e quadros e tapetes e peças de metal e prata, uma cena vívida que fotografei na memória. Ainda sinto o cheiro da poeira. Como se levasse em meus bolsos as tecla do piano que não estava mais lá quando cheguei, mas soube que esteve um dia. Seus pedais e suas notas, que imaginei vibrando sob os dedos de sua avó, muitas vezes depois, no vácuo do meu bolso, entre minha identidade, algumas moedas e meu isqueiro Zippo.
Mal atravessei o grosso marco da porta, saindo da calçada de mosaico através da qual a casa avançava uns dois palmos, fui arrebatado por uma visão. Não era de paixões intensas, digo, não sou, não sei... Meu mundo esteve sempre rodeado de belas mulheres, o que torna mais difícil entender minha reação naqueles dias, meses, anos que seguiram. Por algum tempo, muito, convém dizer, nada mais fazia sentido além daquela visão. Uma mulher normal que vesti com pedrarias e um manto que não era real nem merecido por completo.
Fui apresentado ao pai do anjo, à mãe do anjo, enfim, ao anjo. Beijei-lhe a face do lado direito, depois do esquerdo e uma ânsia de correr ou me precipitar em exageradas palavras me subia do calcanhar até o último fio despenteado de cabelo. Afastei-me dois passos e fitei-lhe enquanto discretamente me olhava entre um e outro monossílabo com que respondia as perguntas e comprimentos de meu amigo. Levantava, quando me olhava, uma sobrancelha e cerrava a outra contra os olhos castanhos; um castanho arregalado a todos os passantes quando chegava à janela pra olhar lá fora.
À noite, no sofá da sala, depois do jantar e todos já tendo se recolhido aos quartos exceto nós, falávamos de banalidades e ela me contava sobre ela. Não se sabia bonita, dizia. Sua avó tinha sido vedete do teatro nos anos 30 e tinha muitos chapéus. Eu dizia sobre nunca ter tido artistas na família, nem tão pouco eu ter nascido com algum dom para qualquer arte. A mãe advogada lhe pediu que estudasse arte e filosofia, enquanto eu dava duro numa loja de materiais elétricos e não pensaria mais tão cedo em estudos. Ela acreditava em Deus o suficiente; Eu bem pouco, quase nada ou só às vezes. Nossos olhares se cruzavam quando não estavam fixos nas bocas um do outro. Depois disso levantei e fui até o parapeito respirar; quando voltei ao sofá, já éramos uma só pessoa. Não me distinguia dela nem ela de mim e andamos juntos nesses dias e até o inverno. Dançávamos na rua entre os transeuntes curiosos e aflitos. Entre os sentimentalmente frustrados. Eu não era mais como eles, apenas mais um, naqueles dias. Eu era, estava, sentia além.
Não fomos lançados a terra sem asas por acaso. Sentia-me feliz por isso, por não ter asas. Existem muitos pardais no centro. Chegaram rápido, depois que em 1907 Osvaldo Cruz fez trazerem 100 casais deles de Portugal e soltou no Rio. Revoavam nas árvores, bem abaixo, não se metiam às alturas. Deveriam me invejar, se eles soubessem que existiam, como eu os invejara até ali. Eles não sabem. Eu seria por dois segundos longos um pássaro, e seria a última coisa que eu seria, antes de não mais existir ou me esquecer que existia. E se me esquecesse, seria como eles, sem saber que existem e que seus ancestrais se fartaram de insetos entre fados e garrafas de vinho do porto. Passavam a vida toda voando e isso tirava a poesia de voar, pra eles. Mas só se soubessem que existiam. Eu via em cores, não sabia mais voar, mas eu iria ser pássaro outra vez. Digo outra vez porque me lembrava de ter sido pássaro e voado mais que um. Sentia um vento de pássaro no cabelo. Ia tão alto que acreditei que poderia viver aquilo até ver a ultima estrela do universo desabar no mar e morrer, antes de se esvair o que eu sentia. Se tivesse a natureza me dado asas, não teria sido tão pássaro quanto fui.
No verão viajamos juntos. Andamos a esmo a pé pelo asfalto, de madrugada e à primeira estrela cadente que vimos juntos ela me pediu que fizesse um pedido, de olhos fechados. Eu pedi que aquilo nunca acabasse, mas não disse nada. Quando me perguntou o que eu havia pedido, disse: "Um copo d'água. Estou morrendo de sede". Ela divagava sobre como era engraçado chamarem aqueles meteoros raquíticos que se queimavam na atmosfera o tempo todo, de estrelas cadentes. Como se fosse possível uma estrela despencar no meio de nós. Mais provável seria que a terra despencasse na superfície de uma estrela qualquer dia desses. Rimos juntos tantas vezes. Estrelas não caem do céu. Mas homens, esses podem muito bem cair.
As pernas balançavam no ar e tocavam as paredes do lado de fora; meu nariz tocava o nada e todo eu tocava o tempo. O último tempo. Não chegava ninguém. Do nono andar em diante não havia escritórios há tempos e mesmo nos horários de intensa movimentação, não havia pessoas. Do décimo primeiro em diante haviam feito reformas a pouco, e o décimo sétimo e o décimo oitavo estavam por terminar ainda. Duas tábuas em xis, quando cheguei até lá pelas escadas, avisavam que não era permitido entrar ali, mas nada impediam. No sétimo, ficava o consultório do meu médico, o único que o plano de saúde da loja oferecia e um completo idiota. Quando fui lhe pedir que me receitasse algo pra minha insônia, semanas antes, me colocou um estetoscópio ao peito e me mandou parar de fumar. Só isso. Fez várias perguntas sobre o porque de eu querer tomar remédios pra dormir e não acreditou nas respostas. Ou talvez tenha acreditado nas respostas e desconfiado de minha aparência. Insistiu pra que eu tomasse uns maracujás com açúcar e que eu estava com uma cara ótima. Estava um trapo ao espelho. "Tarja preta é ruim" e bla, bla, bla e continuaria sem dormir e pronto, se o maracujá não resolvesse. "Mais alguma coisa? Boa tarde, até a próxima e diminua esses cigarros, heim". Abriu um sorriso mecânico de profissional; Um sorriso idiota.
Não fumava antes dela e sabia viver. Mas não comecei por ela, também. Ou teria sido? Ela foi meu primeiro vício, aquilo que eu não vivia sem e sofria na abstinência. Como dizem: um vício puxa o outro que por sua vez nos reduz a culpa pelo terceiro e assim se vai adiante. Fumei alguns cigarros na janela do Ames, meus últimos, pensava olhando um navio chegar ao porto.
Fica o ano todo o movimento a carregar e descarregar navios tailandeses, filipinos, chineses, ingleses, estrangeiros que fazem filas ao longo da costa esperando a vez. Em semanas de congestionamento no porto, o horizonte fora da entrada da baía é um espetáculo. Centenas de luzes numa linha reta flutuando sobre a negritude da noite marítima, em espera. Foi no píer que me disse pela primeira vez que me amava. Retribui dizendo o mesmo. Creio que não mentisse. Naquele tempo era possível que me amasse. Era ainda bom o suficiente, profundo o suficiente, era eu, acima de qualquer coisa. E eu a incluía em mim. Numa noite, quando olhávamos os navios da praia, ela deitada no meu colo, já eram três da manhã e uma velha passou vendendo bombons numa bacia de alumínio. Comprei dois e perguntei a velha negra o que a fazia vender bombons àquela hora da noite, tão encurvada, numa praia quase deserta. Estava desde cedo a caminhar e a bacia ainda estava cheia. Era avó de oito negrinhos cuja mãe se metera com um malandro traficante da baía e foi-se, deixando à velha o fardo. Contou-nos toda a história, com uma voz arrastada e triste. Parecia precisar conversar e enumerou todos os netos, um a um pelo nome. Este era uma praga de moleque, aquele estudava a primeira série e precisa dos caderninhos, outro, ainda de colo, ficava com a mais velha enquanto a avó vendia os doces; Estabanada, mas prestativa e trabalhadeira. Contou mais alguns feitos das crianças com ar de orgulho e resignação, deu boa noite, que deus nos abençoasse e se foi. Os olhos da mulher no meu colo estavam como os de uma criança triste, crispados de lágrimas fitando o nada; Perdiam-se nos vaga-lumes estrangeiros do horizonte breu, em fila. Permaneci em silêncio e chorei com ela, sem saber se pela miséria daquela negra ou por algo que desconhecia. Impotente por não poder tirar-lhe as tristezas, nem as da velha; feliz por ela chorar no meu colo e o vento secar nossas lágrimas. As lágrimas de dois. Eu amava o vento daquelas madrugadas.

Ames, 18º Andar - Parte II (Ixo)

PARTE II

As pessoas na rua, lá embaixo, sequer me percebiam sentado na janela do décimo oitavo. Eu as percebia melhor do que antes. Sentia seus coraçõezinhos de formiga palpitarem como o meu. Era outra vez como elas. Não dançava mais nas ruas sob o olhar dos curiosos: eu era um deles, despistadamente observando o beijo de um casal de apaixonados e sofrendo, ouvindo conversas no canto escuro de uma festa qualquer, divagando nas carícias discretas de namoradinhos colegiais num banco de circular. Todo saudade, lembrava dela.
Quando íamos as suas festas de família, me sentia um peixe fora d'água. Nunca tive classe, embora tivesse educação. Odiava tudo, muito certo, cheios de cerimônias, muito retos, disfarçando o rancor e o nojo de uns pelos outros. Encostava-me pelos cantos, mas ela não me deixava um segundo só, como se dissesse: eu sou você, estou com você. Se não gostam de você, não gostam de mim também. Eles me engoliam e ruminavam. Sabiam que eu era eu, separado, diferente deles. E ela, ela. Eu mesmo não sabia, não queria saber.
Entre meus amigos ela sempre esteve à vontade. Minha família eram eles, quem gostava de mim. Ela gostava de meus amigos mais que eu até. Os desbundados, os cabeludos, os loucos; aqueles que acreditavam em deus e que a terra ainda era chata, apesar de Galileu. Eu a deixava solta entre eles, onde ela não usava a classe que tinha. Não era como eu e se adaptava as circunstâncias e lugares facilmente. Dormíamos juntos no chão do mundo olhando pro céu, como Oscar Wild. Fumávamos e bebíamos cerveja quente e cachaça nos botequins de periferia até tarde. Sentíamo-nos livres entre nós e seguíamos como um bando de pássaros revoando entre as arvores e prédios e ruas e carros e outros pássaros, poucos, da nossa espécie. Diga-me com quem andas e te direi quem és... Pois ela era eu e eu, ela.
Os pardais estavam nas árvores intoxicadas da praça lá embaixo. Começavam o barulho do entardecer e o trânsito aumentava com o rush das cinco. Mulheres com suas bolsas nos pontos lotados de ônibus e gente. Gente que não olhava pra cima. As pessoas se acostumam com a vida cotidiana, olham pra frente e conhecem o caminho de casa ao trabalho. Não vêem detalhes, crianças com lindos olhos, belas cheias de frescor, pessoas tristes que não chamam a atenção, gente alegre assobiando soltas pela calçada, pombos, nada. Cruzam-se nas ruas e morrem no dia seguinte, sem que ninguém saiba suas histórias. Como eu. Aproveitava minhas últimas visões do mundo que me cercava, sem pesar. Não queria saltar ainda, queria sentir mais o ar, o pó que cobria a vida como um lençol cinza fosco. Senti na memória o cheiro de margaridas roubadas e as desejei uma vez mais.
As margaridas... Eu costumava rouba-las dos canteiros. Os jardineiros me odiavam, eu lhes destruía o trabalho. Mas qual é, senão emprestar sua graça aos poetas e apaixonados, a razão de ser e o sentido das margaridas? Todas as tardes ia encontrá-la e no caminho lhe roubava as flores e colocava algumas no bolso da camisa, levando outras na mão. Punha-lhe as flores nos cabelos e ela as punha nos meus. E íamos à praia caminhar descalços e em silenciosa cumplicidade. Quando chegávamos ao ponto deserto da praia, sentávamos e lembro de lhe tocar os seios e ela seguir minha mão com os olhos, mordendo os lábios, entregue. No segundo verão que passamos juntos, todas as margaridas murcharam nos canteiros. Só voltaram a florescer, minguadas, no fim do inverno. Mas já não tinham mais o mesmo cheiro nem ela as colocava nos cabelos.
Que eu lhe ame, que tu ames, que nos amemos. É um belo nome pra um prédio, Ames. Mas como verbo, se conjugado sozinho, devora. A tarde desabava rápido e uma chuva fria e fina começou. O vento aumentou um pouco naqueles últimos minutos. Talvez com a chuva alguém me percebesse ali. As pessoas olham para o céu quando sentem as primeiras gotas de chuva, como pra ter certeza do que é. E eu estava lá no topo, no céu do Ames, sentado à janela. Se alguém me visse, avisaria a portaria do prédio e em segundos eu teria que saltar, antes que a segurança do edifício chegasse. Ou não. Eu tinha tempo. A gente da rua, as cinco, só quer ir pra casa. Quando olhassem pra cima pensando no trânsito, nos ônibus apertados, na fadiga, desejando um banho e um beijo da mulher que encontrariam, talvez nem pensassem que me jogaria. Podia ser qualquer coisa, de vigia a um limpador de janelas destemido, fumando um cigarro com as pernas pra fora, setenta metros acima... Não! Se me vissem ali, rapidamente subiria o elevador cheio de pessoas de bom coração dizendo se importar e me pedindo pra não fazer, que sou jovem, que tenho muita vida pela frente... Pois se ouvisse algum barulho subindo, saltaria antes mesmo que me vissem o rosto convicto.
O vento jogava as gotas em mim e eu sentia a chuva, quase na horizontal, o frio da chuva na pele. Subimos uma vez uma montanha e passamos a noite sob uma chuva rala. Tudo lá em cima era frio, com exceção de nós dois. Via-se as luzes da cidade brilhando lá embaixo e não estávamos a sós. Ao redor estavam os amigo, música, bebidas e sanduíches de emergência. Nessa noite minha asma me atacou ferozmente e respirava com tremendo esforço. Ela reagia preocupada, deitada sobre mim ouvindo meu peito chiar como um gato e eu ria, ria, desesperadamente, e fazia gracinhas. Pedia pra eu parar e eu não me controlava, já alto de vodka e vinho. Rouco e sem ar, todos riam de mim, enquanto eu imitava Marlon Brando no Poderoso chefão. Respirava fundo o quanto podia e forçava: "agora quem manda é o Michael, estou saindo dos negócios. Daqui por diante, peçam a ele: Michel Corleoni". A beijava sem ar, não precisava de ar. Ela respirava por mim, era meu ar. Não achava que lhe exagerava a importância; Se pudesse, deixaria que ela vivesse por mim. E como eu amava a chuva daqueles, o cheiro e o frio da chuva naqueles dias. Amava tudo. No passado do verbo.
Não contava, não fui avisado, não percebi o tempo. Esse animal selvagem e silencioso que vive de devorar, que se alimenta de homens e criaturas da mesma forma. Seus vestígios, suas paixões, seus medos, sua história, tudo rói, lentamente, como os ratos e as traças aos livros e móveis e roupas velhas; ou nos engole inteiros e depois digere deitado ao sol, à maneira das cobras.
Olhei pro céu nublado. A noite não tardaria a despencar sobre as ruas e o mar outra vez, como todos os dias. Queria ver pela última vez as estrelas e o céu estava nublado; a natureza me deixara na mão. Traição!
Sim... Eu trai meu amor uma vez, por sexo. E quando eu disse, não acreditou que era apenas isso. Como todos os amantes, juramos ser sinceros sempre e não mentir. Mas diferentemente de todos eles, eu acreditei que isso era um voto real e possível. Não esconderíamos então nada um do outro. Uma noite, não uma qualquer, estávamos no píer e ela me perguntou se eu alguma vez já a havia traído. Eu repetia sempre pra ela que se ela deslizasse e me contasse, se não fosse importante, perdoaria. Se me dissesse que me amava. Entenderia sempre como fraqueza e não como desamor. Eu queria que ela pensasse que já que eu a amava a ponto de perdoar deveria fazer o mesmo e ser comigo como eu seria com ela.O ser humano é mesmo um poço de fraquezas, mas ela nunca me traiu. Eu sim. Trai meu amor uma vez, por sexo. E não hesitei em dizer-lhe a verdade quando perguntou; foi quando o tempo começou a nos roer.
Vi seus olhos abaixarem, num instante, e erguerem-se em seguida, já diferentes. Não me olhou nos olhos. Segurei sua mão e ela olhava o mar, perdida, como se suas palavras tivessem todas caído e se afogado no mar adiante. Eu disse que tinha sido fraqueza, que foi uma vez só, que não aconteceria outra vez e todas as outras coisas que aprendi vendo meu pai fazer, mas imaginei jamais precisar usar. Senti a decepção lhe escorrer pelos olhos e bater nas pedras úmidas de maresia, aos nossos pés; o calor de seu corpo fugir pra longe, pra onde olhava, pros cargueiros equilibrados na linha entre o céu e o mar. Tremia por dentro, todo, e não tinha o que dizer a ela. Morri ali, em minha língua e minha fantasia. Fiquei em silêncio com ela e a beijei. Ela aceitou friamente sem reagir. Não, não foi uma noite qualquer; foi minha última noite. Os dias que se seguiram foram mornos, depois frios e, por fim, todo o ártico se encontrava entre nós dois. Não saíamos mais de sua casa, não andávamos na praia, não subíamos montanhas, ela já não tremia quando minhas mãos a tocavam buscando calor. Sem conversas, carícias ou poesia. Tentei a todo custo consertar, mas respeitei afinal o fato dela não compreender. Também eu queria ter sido outro, mais forte, mas não fui. Deixei-a se afastar devagar. Não confiava mais em mim. Nem eu confiava; fraco. Havia traído sem perdão e meu coração ainda era dela, para minha derrota.
Não foi perdê-la que me derrubou, foi perceber que a havia perdido. Se aquilo entre nós acabava e tudo tinha um fim, independente de ser bom e grande e forte... Então tudo teria fim. Passaria a vida a tapar em mim os buracos de minhas felicidades passageiras, com pás de resignação e tristeza. O tempo nos consome e dura em consumir, muito mais que as pedras os barcos e os homens. Muito mais que qualquer história boa ou má.
Na mesa de um bar, em nossa última noite, ela escreveu um bilhete num guardanapo e o pôs sob um copo. Já não agüentava mais tê-la e não tê-la. Perguntei o que poderíamos fazer pra tudo ser como antes."Nada. O tempo não volta". Ela disse. Nos despedimos, bebi a ultima gota do copo e meti no bolso o bilhete. Não lhe dei um último beijo porque não podia, embora quisesse. Não havia como lutar contra aquele desabamento de nós. Outra vez eu era eu, e ela, ela. Algo que há muito não sentia. O bilhete: guardei na carteira a caminho de casa, sem ler. Pensei em queimá-lo sem saber o que trazia escrito; não importava, já que tinha acabado. De qualquer forma seria pior saber, como realmente foi.
No dia do seu aniversário, aflito, decidi por fim atear fogo no bilhete e o li antes de queimar. Estava escrito: "Te amei cega e indiscutivelmente. Ainda te amo, não mais cega, mas ainda indiscutivelmente". Então tinha jeito! Eu é que não lutei o bastante, pensei. Corri pro telefone e liguei pra desejar feliz aniversário. Esperava que ela reagisse de alguma forma, depois de tanto tempo, que dissesse querer me ver, como eu a ela. Ela ainda me amava, eu sabia. Só ouvi sua voz, metálica e dura, saindo e se perdendo entre os sons dos carros e dos transeuntes, gélida como o espaço, atravessando os quilômetros de fios e antenas que nos separavam. Nem sinal do verbo amar. O tempo, a tudo apaga e rói.
Na próxima vida seria um pássaro, ou uma estrela, ou um rato a roer as casas e os livros dos homens; Nessa não podia mais ser nada além do que fui. Não sabem do tempo, nem do desgosto, nem da finitude das coisas, nem guardam boas lembranças pra lhes doer em dias ruins; são eternos enquanto existem sem saber e apenas voam e brilham e roem enquanto podem, sem futuro, passado. Sem histórias.
Do alto do grande prédio rosa á beira do mar o mundo era igual. Nem meu sentimento diminuía, nem o ar era rarefeito, nem me senti mais perto de deus, nada. O pequeno universo ao meu redor estava, igual, apenas visto de cima. Que eu amei, tu amastes, nos amamos... Aprendi a conjugar no passado esse verbo. Tirei do bolso o bilhete e meu Zippo, e queimei. Acendi um cigarro nas chamas do bilhete e posso dizer que eram iguais a todas as outras, sem nenhum sinal de amor; como as chamas de uma bula ou uma nota fiscal. Acendi o cigarro e olhei pra cima, pras nuvens que insistiam em cobrir o céu. Queria mesmo ver as estrelas. Mas não queria mais esperar, não podia mais esperar o céu se abrir.
(Ecoporanga, 02/04/99 - Vitória 15/09/04).

Inauguração Em Breve

Caros amigos que escrevem no Covil do Lobo. Isso é um presente que vou dar a todos nós. E que vou abrir a mais gente também. A partir de agora, todo mundo vai poder postar sozinho, e assim, vai ficar bem mais divertido.
Abraços.
O layout vou fazendo devagar...