terça-feira, novembro 09, 2004

Ames, 18º Andar (Ixo)

Do alto do prédio rosa à beira do mar, a visão do mundo não era diferente de quando peguei o elevador. Nem minha angústia diminuiu ou aumentou, nem o ar era rarefeito. Apenas via aquele pequeno universo do qual me acercava todos os dias, de outro ângulo; do alto; do décimo oitavo andar do prédio rosa à beira mar.
O edifício, muito mais velho que eu, como é comum no centro, servia há muito por seu fácil acesso e largas janelas, aos desesperançados e sofredores; os que precisavam de atenção e não encontravam. Isso levou os administradores a gradearem todas as janelas do prédio para evitar suicidas e doentes da alma. Eu tinha acesso e tudo não impediu que eu estivesse ali, com o corpo pendendo pra fora, sentado na mais alta janela sem grade do Ames. Chamava-se edifício James nos anos setenta. Antes do fim da década, muito mal cuidado, perdeu o grande "J" de ferro do nome, que se desprendeu da fachada e foi roubado de manhã, dizem que por um carrinho de ferro-velho. Demoraram tantos anos pra mandar fazer um novo "J" que as cartas começaram a sair e chegar no prédio com o novo endereço: edifício Ames, sem a letra perdida. Por fim, os condôminos, por apego ao sugestivo novo nome e aversão aos estrangeiros, aquela raça que infestava a região do porto, como bons representantes do espírito da ilha, impediram que a letra fosse recolocada na fachada e ainda mandaram fazer um "A" maiúsculo. Isso foi no início dos anos 80 e conjugaram um verbo naquela fachada.
Nunca fui bom com verbos. Meu forte são os substantivos e adjetivos, mas, infelizmente, não existe ação sem verbos e eu pensava na conjugação do verbo amar. Que eu ame, que tu ames, que nós nos amemos... Não vingaria explicar. Até que ponto tal sentimento pode enrodilhar, nos deixando alheios ao controle de nossas intempéries, em sua teia de fogo e perfume? Que eu ardesse no inferno, mas coloquei friamente, sem que nenhum arrepio tocante me afligisse, as pernas pra fora da janela. Fixei-me no filete de mar que separava o porto do outro lado do canal. Ali o mar tinha fim, como um rio; o horizonte era terra firme, o lado de lá, o continente. Aliás, tudo ali tinha fim; eu tinha. Cometia o erro de fantasiar, vestir pessoas de divindades perfeitas e o tempo que tinha de infinito... Quando tudo é breve e tem fim, diziam à época do mal do século. Disperso na visão do canal escuro voltei-me ao princípio, refazendo as lembranças, como se por algum momento tivesse deixado de fazer isso, não para encontrar uma desculpa pra não fazer o que planejava, mas como para reafirmar minha convicção.
Que eu ame, que tu ames, que nós amemos... Numa não qualquer primavera -e não poderia ser outra a estação ¿encontrei-me em uma casa estranha, uma casa de estranhos, a convite de um amigo. Hospedei-me nela com ele por alguns dias. Na verdade, acho que nunca mais sai de lá, que lê dei meu ultimo suspiro. Todos aqueles móveis velhos misturados com novidades, e quadros e tapetes e peças de metal e prata, uma cena vívida que fotografei na memória. Ainda sinto o cheiro da poeira. Como se levasse em meus bolsos as tecla do piano que não estava mais lá quando cheguei, mas soube que esteve um dia. Seus pedais e suas notas, que imaginei vibrando sob os dedos de sua avó, muitas vezes depois, no vácuo do meu bolso, entre minha identidade, algumas moedas e meu isqueiro Zippo.
Mal atravessei o grosso marco da porta, saindo da calçada de mosaico através da qual a casa avançava uns dois palmos, fui arrebatado por uma visão. Não era de paixões intensas, digo, não sou, não sei... Meu mundo esteve sempre rodeado de belas mulheres, o que torna mais difícil entender minha reação naqueles dias, meses, anos que seguiram. Por algum tempo, muito, convém dizer, nada mais fazia sentido além daquela visão. Uma mulher normal que vesti com pedrarias e um manto que não era real nem merecido por completo.
Fui apresentado ao pai do anjo, à mãe do anjo, enfim, ao anjo. Beijei-lhe a face do lado direito, depois do esquerdo e uma ânsia de correr ou me precipitar em exageradas palavras me subia do calcanhar até o último fio despenteado de cabelo. Afastei-me dois passos e fitei-lhe enquanto discretamente me olhava entre um e outro monossílabo com que respondia as perguntas e comprimentos de meu amigo. Levantava, quando me olhava, uma sobrancelha e cerrava a outra contra os olhos castanhos; um castanho arregalado a todos os passantes quando chegava à janela pra olhar lá fora.
À noite, no sofá da sala, depois do jantar e todos já tendo se recolhido aos quartos exceto nós, falávamos de banalidades e ela me contava sobre ela. Não se sabia bonita, dizia. Sua avó tinha sido vedete do teatro nos anos 30 e tinha muitos chapéus. Eu dizia sobre nunca ter tido artistas na família, nem tão pouco eu ter nascido com algum dom para qualquer arte. A mãe advogada lhe pediu que estudasse arte e filosofia, enquanto eu dava duro numa loja de materiais elétricos e não pensaria mais tão cedo em estudos. Ela acreditava em Deus o suficiente; Eu bem pouco, quase nada ou só às vezes. Nossos olhares se cruzavam quando não estavam fixos nas bocas um do outro. Depois disso levantei e fui até o parapeito respirar; quando voltei ao sofá, já éramos uma só pessoa. Não me distinguia dela nem ela de mim e andamos juntos nesses dias e até o inverno. Dançávamos na rua entre os transeuntes curiosos e aflitos. Entre os sentimentalmente frustrados. Eu não era mais como eles, apenas mais um, naqueles dias. Eu era, estava, sentia além.
Não fomos lançados a terra sem asas por acaso. Sentia-me feliz por isso, por não ter asas. Existem muitos pardais no centro. Chegaram rápido, depois que em 1907 Osvaldo Cruz fez trazerem 100 casais deles de Portugal e soltou no Rio. Revoavam nas árvores, bem abaixo, não se metiam às alturas. Deveriam me invejar, se eles soubessem que existiam, como eu os invejara até ali. Eles não sabem. Eu seria por dois segundos longos um pássaro, e seria a última coisa que eu seria, antes de não mais existir ou me esquecer que existia. E se me esquecesse, seria como eles, sem saber que existem e que seus ancestrais se fartaram de insetos entre fados e garrafas de vinho do porto. Passavam a vida toda voando e isso tirava a poesia de voar, pra eles. Mas só se soubessem que existiam. Eu via em cores, não sabia mais voar, mas eu iria ser pássaro outra vez. Digo outra vez porque me lembrava de ter sido pássaro e voado mais que um. Sentia um vento de pássaro no cabelo. Ia tão alto que acreditei que poderia viver aquilo até ver a ultima estrela do universo desabar no mar e morrer, antes de se esvair o que eu sentia. Se tivesse a natureza me dado asas, não teria sido tão pássaro quanto fui.
No verão viajamos juntos. Andamos a esmo a pé pelo asfalto, de madrugada e à primeira estrela cadente que vimos juntos ela me pediu que fizesse um pedido, de olhos fechados. Eu pedi que aquilo nunca acabasse, mas não disse nada. Quando me perguntou o que eu havia pedido, disse: "Um copo d'água. Estou morrendo de sede". Ela divagava sobre como era engraçado chamarem aqueles meteoros raquíticos que se queimavam na atmosfera o tempo todo, de estrelas cadentes. Como se fosse possível uma estrela despencar no meio de nós. Mais provável seria que a terra despencasse na superfície de uma estrela qualquer dia desses. Rimos juntos tantas vezes. Estrelas não caem do céu. Mas homens, esses podem muito bem cair.
As pernas balançavam no ar e tocavam as paredes do lado de fora; meu nariz tocava o nada e todo eu tocava o tempo. O último tempo. Não chegava ninguém. Do nono andar em diante não havia escritórios há tempos e mesmo nos horários de intensa movimentação, não havia pessoas. Do décimo primeiro em diante haviam feito reformas a pouco, e o décimo sétimo e o décimo oitavo estavam por terminar ainda. Duas tábuas em xis, quando cheguei até lá pelas escadas, avisavam que não era permitido entrar ali, mas nada impediam. No sétimo, ficava o consultório do meu médico, o único que o plano de saúde da loja oferecia e um completo idiota. Quando fui lhe pedir que me receitasse algo pra minha insônia, semanas antes, me colocou um estetoscópio ao peito e me mandou parar de fumar. Só isso. Fez várias perguntas sobre o porque de eu querer tomar remédios pra dormir e não acreditou nas respostas. Ou talvez tenha acreditado nas respostas e desconfiado de minha aparência. Insistiu pra que eu tomasse uns maracujás com açúcar e que eu estava com uma cara ótima. Estava um trapo ao espelho. "Tarja preta é ruim" e bla, bla, bla e continuaria sem dormir e pronto, se o maracujá não resolvesse. "Mais alguma coisa? Boa tarde, até a próxima e diminua esses cigarros, heim". Abriu um sorriso mecânico de profissional; Um sorriso idiota.
Não fumava antes dela e sabia viver. Mas não comecei por ela, também. Ou teria sido? Ela foi meu primeiro vício, aquilo que eu não vivia sem e sofria na abstinência. Como dizem: um vício puxa o outro que por sua vez nos reduz a culpa pelo terceiro e assim se vai adiante. Fumei alguns cigarros na janela do Ames, meus últimos, pensava olhando um navio chegar ao porto.
Fica o ano todo o movimento a carregar e descarregar navios tailandeses, filipinos, chineses, ingleses, estrangeiros que fazem filas ao longo da costa esperando a vez. Em semanas de congestionamento no porto, o horizonte fora da entrada da baía é um espetáculo. Centenas de luzes numa linha reta flutuando sobre a negritude da noite marítima, em espera. Foi no píer que me disse pela primeira vez que me amava. Retribui dizendo o mesmo. Creio que não mentisse. Naquele tempo era possível que me amasse. Era ainda bom o suficiente, profundo o suficiente, era eu, acima de qualquer coisa. E eu a incluía em mim. Numa noite, quando olhávamos os navios da praia, ela deitada no meu colo, já eram três da manhã e uma velha passou vendendo bombons numa bacia de alumínio. Comprei dois e perguntei a velha negra o que a fazia vender bombons àquela hora da noite, tão encurvada, numa praia quase deserta. Estava desde cedo a caminhar e a bacia ainda estava cheia. Era avó de oito negrinhos cuja mãe se metera com um malandro traficante da baía e foi-se, deixando à velha o fardo. Contou-nos toda a história, com uma voz arrastada e triste. Parecia precisar conversar e enumerou todos os netos, um a um pelo nome. Este era uma praga de moleque, aquele estudava a primeira série e precisa dos caderninhos, outro, ainda de colo, ficava com a mais velha enquanto a avó vendia os doces; Estabanada, mas prestativa e trabalhadeira. Contou mais alguns feitos das crianças com ar de orgulho e resignação, deu boa noite, que deus nos abençoasse e se foi. Os olhos da mulher no meu colo estavam como os de uma criança triste, crispados de lágrimas fitando o nada; Perdiam-se nos vaga-lumes estrangeiros do horizonte breu, em fila. Permaneci em silêncio e chorei com ela, sem saber se pela miséria daquela negra ou por algo que desconhecia. Impotente por não poder tirar-lhe as tristezas, nem as da velha; feliz por ela chorar no meu colo e o vento secar nossas lágrimas. As lágrimas de dois. Eu amava o vento daquelas madrugadas.

3 Comments:

Blogger Unknown said...

Bem, esse é definitivamente o primeiro post. Quem será o segundo? rsrsrs

9:28 PM  
Anonymous Anônimo said...

l-

12:37 PM  
Anonymous Anônimo said...

Aprendi muito

5:33 AM  

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