sábado, novembro 13, 2004

Ajuda do vizinho (Ixo)

Xícaras de açúcar e intimidades com vizinhos eram algo tão longe da sua realidade quanto o cubismo, a guerrilha armada e a mitologia grega, mas naquele dia, naquele maldito arroubo aventureiro, se meteu -sozinho como sempre -naquela restinga arenosa e suja, descalço da praia; e encheu os pés de espinhos de cactos. Daí, já em casa, depois de ter aprendido uma nova ortopedia pra andar e dirigir sem se machucar mais, remeteu-se ao estereótipo da xícara de açúcar. Não gostava mesmo. Estavam, os espinhos, num ponto cego do pé. Contorcia-se; pegou uma agulha e sentou-se no chão; teria mais mobilidade. Não alcançava mesmo. Segurou com força, torcendo o calcanhar até encostar abaixo do umbigo: por dentro não dava. Inverteu a posição e revirando-se, olhava o calcanhar nas costas. Molhou os dedos no copo que repousava na mesinha baixa e esfregou. Dava pra ver melhor assim. Nas primeiras agulhadas sangrou e não viu mais espinhos. Molhava mais os dedos, mas estava tudo vermelho. Impossível. Andou até o banheiro, marcando um tapete no caminho; lavou os pés. -Saem, basta inflamar -pensou. Podia esperar. Usaria creme de amendoim. A inflamação não demoraria mais que uma tarde. Fez um emplastro quente e esperou, sentado. Quis ir a geladeira e não pôde. Saltou em um pé só. Mas foi quando caiu entre o banheiro e o quarto, decidiu por recorrer ao vizinho.
-Tenho que levar um presente, algo assim. Mas depois de seis anos, parece bizarro demais -Seguiu saltando em um pé só até a cozinha.
-Não, não -encontrou um pacote de frutas peruanas secas, mofando bem no fundo do armário; vestígio da visita surpresa de tia Lenir, em março. Sacou de uma receita para turistas colhida num livro, presente de alguém que imaginou que gostasse dessas coisas; faria uma sobremesa. Substituiria os ingredientes que faltassem. As frutas peruanas secas, iogurte light e muita calda. Era bem hora do jantar. Se fosse rápido, daria tempo. Uma hora depois saltou até a porta do vizinho, duzentos metros adiante. Atendeu a senhora:
-Sou o vizinho aqui do lado... -ela sorridente:
-Eu sei. Entre, estamos acabando de jantar.
-Trouxe para vocês. Fiz dois... Imaginei, por quê não...?
Soltou um sorriso engasgado e frouxo e segurou o mancar.
Sentou-se à mesa, negando o convite para jantar, obviamente. As pessoas, quatro ao todo, dissimularam a estranheza da visita. Tentaram puxar assunto, ele manteve-se reticente. Assim que começaram a comer a sobremesa –e ele mesmo havia provado, sem meter o dedo é claro, para assegurar-se que seria um verdadeiro cavalheiro –colocou em prática o plano:
-Desculpem...Onde é o banheiro?
A mulher exibia total contentamento com o doce; Lambia os lábios. Apontou o caminho, ele saiu, acentuando o gemido. Deu por si do ridículo. Devia desistir daquilo. Agora que havia entrado na casa, sem um motivo aparente, como pediria? Se oferecessem, se ele conseguisse isso. Voltou do banheiro mancando ainda mais, e sentou-se.
-Aceita um café, uma bebida? -negou. Depois disse sim. Tinha que ser gentil. O calcanhar latejava. Levantou-se e caminhou na sala, lentamente. O dono da casa o acompanhava intrigado os gemidos, enquanto a mulher havia entrado casa adentro:
-Sempre fomos curiosos ao seu respeito. Entra de carro pelo portão, sai de carro pelo portão... -mantinha um tom agradável.
A senhora se aproximava trazendo o café e ele se levantou pra receber, num gesto já desesperado de dar a entender a dor. Enfim, a pergunta veio:
-Tem algo no pé?
“Maravilha. Agora ela se oferece pra tirar e em dez minutos estou livre disso” -concluiu.
-Sim, sim! Pisei nuns espinhos na restinga, e não consegui tirar... Dói bastante...
O casal se entreolhou.
-Quer que te levemos ao pronto socorro?
-Não, claro que não, obrigado -Esperava que a mulher dissesse algo como “posso tentar?”, mas nada. Ficou de pé para colocar a Xícara na mesa e gemeu mais.
-Deixa eu ver? -ela pediu. O marido pareceu surpreso com o gesto e olhou repreendendo, mas ele ignorou e começou a tirar o sapato, já se dando por vitorioso. Quando ela visse, certamente se ofereceria pra livrá-lo dos espinhos. Ela olhou como que concentrada, cerrando um pouco os olhos:
-Tem certeza que não quer que lhe levemos ao pronto socorro? Parece estar feio...
-Não, quer dizer, sim, tenho certeza, está tudo bem. E vou-me indo já. Obrigado pelo café... Só vim mesmo me apresentar... -sem desculpas ou argumentos, correu o olhar até a porta.
O pé balançava em sinal de tensão, de pernas cruzadas, os dois estudando-lhe sem compreender. Era um rinoceronte num McDonalds, pensava. Não iria pedir. Seis anos ali, sem nunca dizer sequer olá; não ia mesmo. Rinoceronte...
Saiu entre os agradecimentos do casal confuso e foi pra casa, saltando num pé só, doendo. Dirigiu com dificuldade até o posto de saúde, onde uma negra com grandes dentes lhe atendeu, enquanto repetia mentalmente:
-Egoístas. Se era pra pagar pronto socorro, não desperdiçava as raras frutas de tia Lenir...

Dante Ixo
Fradinhos, 13 de Novembro de 2004.

2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Amor... Passei aqui... :) Cris.

12:39 AM  
Anonymous Anônimo said...

E depois são raras...

Ari

1:37 AM  

Postar um comentário

<< Home