segunda-feira, abril 30, 2007

04/03/05

A solidão, com a sua vozinha triste anuncia o novo dia. Goteja no orvalho e ao meio dia intimida minha sombra. Almoçamos sem dizer palavra. Dá para ouvir o ranger dos ossos da mandíbula.

A tarde se move com o vagar das nuvens que observamos da varanda, apenas eu e ela, seres fluidos mergulhados no silêncio do avião que se afasta.

Anoitece e ela personifica. Deita-se macia em minha cama, beija minha boca e morre.

Afinal era saudade.

quinta-feira, abril 26, 2007

Mensageiro


Blem, Blem!

Ouvi sinos e cri que o céu se anunciava. O prenúncio coincidia com o auge de minha palidez. Meu corpo desfalecia... A dificuldade de respirar e os batimentos cardíacos cresciam conforme a ansiedade. Eu estava só, no banheiro, curando com água fresca minha febre, quando ouvi as badaladas dos anjos. Confesso que temi terem razão os idólatras.

Pedi a deus para que me deixasse vivo, e, se assim acontecesse, pararia de zombar dos programas evangélicos, dos luais regados a hinos e orações, dos catequizadores nos ônibus, pararia de ouvir a música do diabo e até queimaria meus livros de história e filosofia.

Os sinos continuavam e aos poucos eu fluía para a dimensão extraterrena. Foi então que tive a idéia de resistir: se eu me mantivesse firme, se não me deixasse conduzir às abissais sem fim, se me negasse a pagar o óbolo e tomar a balsa para o outro lado, se não seguisse a luz, talvez, com esses esforços, permanecesse vivo.

Meus olhos pesaram, a cabeça tombava e era difícil manter o corpo em pé, mas resisti firmemente à eternidade. Saí do banheiro me apoiando nas paredes que conduziam até a varanda. Eu me concentrava em irradiar toda a energia que me restava para meus ossos, orgãos e músculos. De repente as badaladas cessaram. Era uma noite tão bonita, com vento úmido e nuvens corpulentas. Acendi um cigarro.

No fundo da escuridão havia um som agudo, um tilintar agradável e aterrorizante. Seria a minha alma se esvaindo ou o vento que, depois de perpassar os vários mensageiros da cidade, chegava a minha casa com os adereços sonoros? Eu nunca havia escutado aquele trinado místico! Não, eu não me deixaria levar, mantive a vontade rija e permaneci acordado.

Na noite posterior percebi o sinal da morte quando a televisão desligou abruptamente. Mas eu já havia a vencido antes, bastava me manter desperto.

Desde então nunca mais pude dormir em paz...

Passaram cinqüenta anos desde o primeiro presságio e ainda hoje, todas as noites a morte vem me sondar. Por um lado, deixar de dormir ampliou o meu tempo útil. Li tudo o que quis, assisti muitos filmes, apreciei de todas as culinárias e produzi incessantemente, porém, incapaz de liberar meus fantasmas durante o sono profundo, acabei por me tornar um neurótico. Todos os que conviviam comigo me abandonaram, nenhum foi capaz de suportar as birras, o mau humor, as crises hipocondríacas e nem o fato de eu ser sempre a vítima. Foram todos uns ingratos!

Sou um homem solitário e confesso estar cansado. Resolvi que hoje, no qüinquagésimo aniversário do dia em que venci a minha morte, serei presenteado com os sonhos há tanto esquecidos.


Hospital Psiquiátrico Engenho Novo

Calma! Calma! Caaaaaalma!!!

terça-feira, abril 24, 2007

Já me disse tantas vezes calma.

Por que não tomo logo o vidro inteiro de calmantes?

domingo, abril 22, 2007

Irmãos

Meu irmão gêmeo nasceu cinco minutos antes de mim. Sempre tive a impressão de que ele sempre esteve a minha frente.

Era o meu único irmão e desde cedo nos foi inculcado o apreço pela disputa. Acabamos por nos tornar os maiores rivais. Na verdade os únicos concorrentes, pois o resto dos moleques de nossa cidade nunca esteve à altura de nossos feitos. Éramos os mais inteligentes, os mais bonitos e os mais habilidosos. Infelizmente eu sabia que também não era páreo para ele.

Na adolescência nos apaixonamos pela mesma garota. Foi ele quem a conquistou. Sobrou pra mim a irmã mais nova. Anos depois passamos os dois no vestibular para engenharia mecatrônica. Sua pontuação foi ligeiramente superior.

Meu desempenho na vida era razoável, mas me sentia o pior dos seres quando amargava mais uma derrota para meu irmão. E ele, na maioria das vezes, sequer sabia que me vencia. Apesar de tudo eu o amava, o amava muito, e é por isso que não consigo me perdoar...

Premeditei tudo dias antes. Combinamos de jantar às nove horas. Ele levaria a noiva Beatriz, eu a minha namorada Isadora.

Naquela noite, como de costume, meu irmão se antecipou e chegou ao restaurante dez minutos mais cedo. Os dez minutos antes de eu chegar, em que o restaurante foi tomado por assaltantes. Disseram que os bandidos eram cautelosos e estavam dispostos a evitar feridos, porém, quando um deles viu Beatriz, a belíssima, resolveu se aproveitar da situação. Primeiro tocou seu cabelo, depois foi descendo a mãe até dentro do decote e acariciou seus lindos seios. Meu irmão não agüentou a injúria e reagiu.

Era a minha intenção comunicar que eu havia me casado com Isadora, na surdina, e que enfim tomara à dianteira. Até preparei um discurso, mas não tive tempo. Antes me deparei com seu corpo inanimado e não pude conter a satisfação, numa gargalhada que repercute até hoje em meus sonhos.

sexta-feira, abril 20, 2007

O desejo de morte do pelicano

O Pelicano sentia que a vida se esvaia. Esse era o processo natural. Como uma bomba relógio fadada a explodir desde o dia de sua concepção. Não havia escapatória: não viveria o bastante para que os avanços científicos o tornassem imortal. Por isso respeitava a morte, sua inevitabilidade, em seu tempo, era absoluta. A admiração era profunda: portava-se como um vassalo a mercê da vontade fatal. Poder-se-ia confundir seu respeito velado com o desejo, tantas horas do dia se dedicava ao assunto. Para o pelicano, tratar a morte com naturalidade era indispensável. Sem a morte a vida sequer se faria sentir. Ia mais longe: pensava na casualidade, na iminência, e vislumbrava um ataque fulminante que tanto poderia lhe atacar na próxima esquina como na mais distante, e por isso se agarrava à vida com urgência. O medo, ao contrário de encarcerá-lo, lhe infundia a ousadia. Desejava, sim, a vida, por amar a morte.

quinta-feira, abril 19, 2007

03/03/05


Voltei ao tempo nublado no quarto fechado na casa. A alma trancada na antiga cela. O dia aqui foi tempo suficiente para recobrar a condição de miserável e seguir os primeiros passos rumo à depressão. É tudo tão absurdamente insosso e frágil a sanidade! Há um pequeno infinito de variedades dentro um absoluto nada.

segunda-feira, abril 16, 2007

Preciso parar na superfície


Preciso deixar-me por descobrir

Eu

Que sempre me achei doce

Que sempre me achei pacífico

E relembrei as armadilhas fatais

Que construía quando criança,

Da caça às bruxas e lagartixas

Que decapitava no relógio d’água,

Substituía as tripas por trapos

Dos sapos que brotavam atrás das pedras,

E adorava ver a sangria dos porcos.

Ontem apertei um coraçãozinho

Até que ficasse roxo e imóvel.

Não chorei.

TEMPESTADE

"Um homem em que falta a metade satânica não é nada”
Nelson Rodrigues

Dedicado aos demônios