Blem, Blem! Ouvi sinos e cri que o céu se anunciava. O prenúncio coincidia com o auge de minha palidez. Meu corpo desfalecia... A dificuldade de respirar e os batimentos cardíacos cresciam conforme a ansiedade. Eu estava só, no banheiro, curando com água fresca minha febre, quando ouvi as badaladas dos anjos. Confesso que temi terem razão os idólatras.
Pedi a deus para que me deixasse vivo, e, se assim acontecesse, pararia de zombar dos programas evangélicos, dos luais regados a hinos e orações, dos catequizadores nos ônibus, pararia de ouvir a música do diabo e até queimaria meus livros de história e filosofia.
Os sinos continuavam e aos poucos eu fluía para a dimensão extraterrena. Foi então que tive a idéia de resistir: se eu me mantivesse firme, se não me deixasse conduzir às abissais sem fim, se me negasse a pagar o óbolo e tomar a balsa para o outro lado, se não seguisse a luz, talvez, com esses esforços, permanecesse vivo.
Meus olhos pesaram, a cabeça tombava e era difícil manter o corpo em pé, mas resisti firmemente à eternidade. Saí do banheiro me apoiando nas paredes que conduziam até a varanda. Eu me concentrava em irradiar toda a energia que me restava para meus ossos, orgãos e músculos. De repente as badaladas cessaram. Era uma noite tão bonita, com vento úmido e nuvens corpulentas. Acendi um cigarro.
No fundo da escuridão havia um som agudo, um tilintar agradável e aterrorizante. Seria a minha alma se esvaindo ou o vento que, depois de perpassar os vários mensageiros da cidade, chegava a minha casa com os adereços sonoros? Eu nunca havia escutado aquele trinado místico! Não, eu não me deixaria levar, mantive a vontade rija e permaneci acordado.
Na noite posterior percebi o sinal da morte quando a televisão desligou abruptamente. Mas eu já havia a vencido antes, bastava me manter desperto.
Desde então nunca mais pude dormir em paz...
Passaram cinqüenta anos desde o primeiro presságio e ainda hoje, todas as noites a morte vem me sondar. Por um lado, deixar de dormir ampliou o meu tempo útil. Li tudo o que quis, assisti muitos filmes, apreciei de todas as culinárias e produzi incessantemente, porém, incapaz de liberar meus fantasmas durante o sono profundo, acabei por me tornar um neurótico. Todos os que conviviam comigo me abandonaram, nenhum foi capaz de suportar as birras, o mau humor, as crises hipocondríacas e nem o fato de eu ser sempre a vítima. Foram todos uns ingratos!
Sou um homem solitário e confesso estar cansado. Resolvi que hoje, no qüinquagésimo aniversário do dia em que venci a minha morte, serei presenteado com os sonhos há tanto esquecidos.
Hospital Psiquiátrico Engenho Novo