sexta-feira, julho 20, 2007

Iniciação negra

“A vida primitiva continua operando em meus sonhos”, pensava nisso constantemente enquanto visitava pela primeira vez a lápide de um amigo de infância que morrera prematuramente jovem, - será que ainda sonhava? Onde foram parar a matéria de seus sonhos, outrora nossos?... Lembrei-me de coisas estúpidas e grosseiras para o momento. Uma madrugada, saindo de uma alta festa, tínhamos que levar uns amigos bêbados de volta ao lar. Estava decidido que iríamos no último ônibus (ou no primeiro, se assim desejassem os deuses orgíacos) pois desgarrados boêmios, não tínhamos um puto no bolso, não tínhamos carro, nem tão pouco dinheiro para o derradeiro táxi, nem mesmo conhecíamos alguém que se conduzisse sobre quatro rodas, mas eram bons tempos. Colocamos este amigo bêbado de todas as coisas possíveis sentado na primeira cadeira do ônibus, claro por ser mais fácil e por não agüentarmos carrega-lo até onde nos sentaríamos, os menos ébrios. No momento da partida, inusitadamente o resvalado companheiro esborrachou-se no asfalto, havia caído pela escada da frente e rolado até o chão ao lado do ponto de ônibus. Rimos todos e ruidosamente levamos aquele camarada nas costas até sua singela cama.
Por que lembrar-se de algo tão estúpido numa hora dessas? Uma homenagem talvez. Era esse talvez, o único jeito de honrar os mortos.

sexta-feira, julho 13, 2007

O Autobiografado


Mastiga-te e sentes o pueril e adocicado sabor (sem a
consistência de carne nova, que fora há muito).
Sente a tormenta de abastar-se de si mesmo; o quanto
é catastrófico provar a metafísica imunda de si mesmo; e como
no contexto-simbiose de um poema, sinta rebelar a poesia
contra o corpo. Este teu perpétuo corpo que sabes não existir
para o Amor e tampouco para derradeiro ódio.
E no que seja relutante . como uma pomba que foge
ao banquete à ave de rapina, soberbo em seu orgulho . cospe-
te! Para que descubra o teu próprio orvalho...
...E enfim MATA-TE.

quinta-feira, julho 05, 2007

pequena biografia.


alguém que gosta de ficar observando o casal de mendigos que trepa embaixo da escada, enquanto ninguém mais nota. As pessoas sobem e descem a escada, passam pela rua em frente e os mendigos se amassam em cima de um fino cobertor, protegidos por um pequeno muro que a vista ultrapassaria se quizesse, mas ninguém nota a não ser o Ariel, que começa a roçar a mão no pinto sem se dar conta.
Alguém que gosta de ir até a sacada para fumar um cigarro e se deparar com o extraordinário, que as vezes vê em tudo e outras vezes em nada, antes de se arrumar para o baile. O casal de mendigos, suas feições decompostas, mas com comedimento, era de uma beleza extraordinária para o Ariel. Pensou em guardar segredo mas uma das facetas do Ariel é a incapacidade de guardar segredos, que não a própria arte, numa gaveta com sachês, versou a namorada. Paradoxo. Alguém que por vezes se sente triste pelo mundo em que vive mas quando descobre Munch se admira com suas pinceladas violentas e atormentadas. E se inspira nos malditos quando escreve. Alguém que admira um velho all star cano médio rasgado nas laterais, que passou a ver belezas extraordinárias em coisas pequenininhas depois que viu Amélie Poulain e adora música. E se admira com a cabeça da formiga vermelha que desenhou. Um simples rabisco circular com caneta vermelha e ele ali parado vendo os fios se desenrolarem.

segunda-feira, julho 02, 2007

Nostalgia da cidade lírica


Balança contra mim, em contradança, a rua.
A rua avança. E as botas estalam.

Sou um bêbado engraçado que tropeça na calçada,
um cão sem dono, caído na esquina.

Agora o que resta é uivar.