sexta-feira, março 04, 2005

HOMEM COMUM (ARIEL LACRUZ)


O ABISMO NO QUARTO 15/02/05 – fragmentos das últimas cartas de Allan Tonto

Voltei ao tempo nublado no quarto fechado na casa. A alma trancada na antiga cela. O dia aqui foi tempo suficiente para recobrar a condição de miserável, e seguir os primeiros passos rumo à depressão. É tudo tão absurdamente insosso e frágil a sanidade! Há um pequeno infinito de variedades dentro um absoluto nada.

Pela manhã, a solidão com a sua vozinha triste anuncia o novo dia. No mormaço ela paira, e ao meio dia, sua sombra incisiva me acomete. A tarde move-se ao vagar das nuvens que observamos da varanda, apenas eu e ela, inseridos no silêncio do avião distante. Anoitece, ela se personifica. Deita-se macia em minha cama, levemente massageia meu pescoço, e depois me estrangula.

Ontem fui ao jazz na Curva, e me entupi de drogas para anestesiar a superficialidade tão incomoda a que se resumia tudo visto pelo meu olhar entediado, naquela mesa cujo silêncio era a única palavra, e nem mesmo a música conseguia me tocar. E você ainda diz que eu sou um rapaz estável, que eu tenho tato para lidar com situações inusitadas sem perder a compostura. Mandei os músicos a merda, e fui.


ASFIXIA – rascunho psicografado encontrado sobre a cabeceira.

Na faculdade de comunicação a comunicação é a lei. O garoto tímido que se senta todos os dias no canto mais ermo da sala, e não fala nada, foi condenado. Dizem que antes de tornar-se humano foi uma pedra bem comportada e depois um brócolis.

O professor pede para que a turma repita: quem não se comunica se trumbica; a linguagem é a expressão da alma, portanto quem cala está... As garotinhas perfumadas, em seus círculos fechados repetem o mantra; os bobos repetem com bobagens, e os candidatos ao estrelato repetem num tom impostado, enquanto dentro da cabeça do garoto tímido, o titã Paulo diz-lhe que não dirá nada e nem dará explicação.

O garoto é mudo, revela-se somente ao caderninho que carrega aonde vai. É a escória do mundo e por isso faz-se vítima por todo o sempre. Fecha o último verso.

Foi desmascarado pelo professor que lhe disse ter o sorriso amarelo, desses que não se manifestam com todos os músculos da cara e nem expressão sentimento, apenas dissimula o desconforto.


DECIFRA-ME OU DEVORO-TE – retirado do diário de Allan Tonto

Voltando para casa, deparei-me com o monstro gerado no ventre das minhas mazelas. Fez a seguinte pergunta: "Quantos reis cabem no reino onde todos possuem a majestade?"

Devo considerar que uma parcela significativa de artistas, é naturalmente egocêntrica. Em sua maioria, são rapazinhos que guardam universos sublimados, e sendo capazes de revelá-los recorrendo unicamente aos talentos advindos da própria percepção e consciência, ao angariarem séqüito fiel de admiradores que dignifica a verdade que defendem, são, movidos pela vaidade, catapultados para acima do curso ordinário a que segue a grande massa. Balela.

Dizia-me a pouco um tal Fiódor que, qualquer consciência é uma doença, e, quanto mais aguda essa, mais grave a patologia. Era com a pseudo-consciência dos meandros da realidade que eu ingenuamente me alegrava. Inserido entre homens massa, que a muito perderam a sua capacidade crítica em benefício do bem estar, a veia artística conduzia-me ao centro que supunha merecer. Mais tarde, quando me percebi com maior clareza e precisão de detalhes, pude notar que só era realmente genial entre os idiotas. E como o centro deixara de ser uma posição inata, seria necessário que competisse para alcança-lo. Tenho verdadeira aversão aos espíritos que a todo custo buscam se destacar, porém, contraditoriamente afligia-me com torturas caso não lograsse a posição mais alta. Então caiu a ficha: sou reservado, muito tímido, deixo-me intimidar por qualquer estrangeiro que antes não se tenha intimidado por mim. Como poderia galgar posições? Nada fiz para conquistá-las pelo simples fato de que nas horas próprias não era divertido nem inteligente a altura. A verdade é que na minha inaptidão residia a ojeriza aos competidores.

Abriu meus olhos a reflexão exigida pelo enigma, mas não o bastante para desvendá-lo, por isso consenti com o olhar baixo à ação do agressor, e num só movimento fui prontamente devorado.

Até que hoje, agonizando em seu estômago, resolvi a questão. A resposta é simples, bem simples: a vaidade fez-me inventar concorrentes, portanto, a auto-estima deve se elevar até onde elevo a estima aos outros. O melhor lugar é ser feliz. Ser feliz. Feliz. Pena que já não há mais tempo. Sacanagem.


POPULAR – trecho recuperado da conversa entre Allan Tonto e Repugnante.

Repugnante:
Garoto como você é sem graça...
Allan:
E porque você ri?
Repugnante:
A sua desgraça me é divertida.
Allan:
É...
Repugnante:
E você consente... defenda-se porra, eu sei que é capaz.
Allan:
Não preciso, meu objetivo não é sair vitorioso.
Repugnante:
Mas que merda de ídolo você pretende ser?
Allan:
É que nem todo o jovem inteligente quer ser astro.
Repugnante:
Então permaneça sendo esse bostinha...
Allan Tonto:
Qual é a sua? A minha seriedade não é uma careta. Simplesmente não ladro, o mundo não tem que repercutir ao som do grito mais alto.
Repugnante:
E por isso se cala?
Allan:
Na verdade eu falo. Só não imponho. Garoto...

5 Comments:

Blogger Ariel Lacruz said...

É incrível como a obra, aos meus olhos severos, perde a qualidade depois de publicada. Na posição de leitor, sem nenhum vínculo maior, tudo parece impreciso e infantil. Mas que merda! Antes era tão bonito.

2:53 PM  
Anonymous Anônimo said...

Continua muito bonito meu caro amigo! A beleza está nos olhos de quem a ve e sente; infelizmennte ou felizmente, não sei, a maioria das pessoas não veem e muito enos sentem essa beleza!!
Um grande beijo! Saudades...

3:46 PM  
Anonymous Anônimo said...

Aguardo, ansiosa, mais notícias de ALLAN TONTO...

12:55 AM  
Anonymous Anônimo said...

Júlio: Muito bom. A angustia, como já disse Heidger, é o sentimento que delata a existência inautêntica; o afã de viver, e, por outro lado, o receio de não o fazê-lo, lhe obriga a meditar e consequentemente a exteriorizar por meio da arte, as intempéries com que se defronta no caminho existêncial que tomou, indo bem fundo, fundo, como o diálogo íntimo que o poeta trava consigo, e que traz a tona, o sopro vindo de seu ente anteiror a concepção histórica que lhe situa fisicamente. Atemporal. Espero por mais notícias.

12:44 PM  
Anonymous Anônimo said...

fala ariel, to vindo aqui a primeira vez, porra cara, em seus textos eu consegui indentificar alguns dilemas de amigos e outros meus cara..... eu queria conseguir me expressar assim, é foda !fora isso, naum sou bom com as palavras, ai vai um abraço, flw cara , até outra vez 1

9:56 AM  

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