quarta-feira, março 30, 2005

quarta feira, dezenove de janeiro de dois mil e cinco, no sítio, ecoporanga(Gauche)

Porque agora tudo repousa no vago. O calor já distante se perde na massa de branco que encobre a lembrança e a transforma num opaco cheiro de saudade. O macio do que eram as mãos dela tocando as minhas, passa rápido pelo sabor da memória. Tem o peso de um suspiro inaudível. Machuca. E a validade dos dias passados juntos, agora é refeita em vontade. Porque agora tudo repousa no vago. E tem resquícios da volúpia. Do que foi seu beijo. Das horas idas. Do largo campo que foi descanso. Entre vaga-lumes e outros brilhos. Do medo que se foi na escura volta. Do vento feito a pedaladas. Resquícios do feliz que foi dito enquanto juntos. Feliz que foi. E que agora repousa no vago. No já distante que se perde no branco. Na falta do ar quente num suspiro próximo. Nas mãos passando rápido. No rápido passar de uma lembrança. No beijo desfeito. Vontade. Ficando presa enquanto idos os dias juntos. Porque agora tudo repousa no vago.

terça-feira, março 15, 2005

Cidade dos Loucos

Chegamos hoje, cidade esta, tão receptível quanto uma lástima. Folheamos, juntos, o mesmo jornal; não se encontra nada, e o pior: há sempre muitas exigências, e, dispensáveis, lavradas no tédio diário; notícias, notícias. Ou talvez se encontra tudo, mas assim mesmo com o puro dissabor da desordem. Prefiro as coisas ordenadas, com dia e horas certas para acontecer. Coisas planejadas, simples. Sem o menor declive da ilusão corriqueira.
Mas a notícia que mais me acometera estragos (estes, irremediáveis!) fora um caso de morte. Olga estava morta. Mal sabia quem era essa moça, mas a notícia que avisava desgraçadamente aquele caso era insensata e me amargurava tanto que passei, naquele instante de interminável dor, a me condoer com pesar pelo sofrimento virtualmente drástico daquela família e de todos os conhecidos da menina Olga. Haveria em qualquer lugar um rapaz apaixonado que se mataria ainda nesta madrugada. A mãe, com sérios problemas no coração, corria algum risco de enfarto fulminante. As irmãs estavam todas desoladas, coitadinhas! Mas a morte também viria para Olga; moça de mais ou menos 1,70m de altura, 50 kg, tez tão alva, cabelos embebidos no negror noturno, olhos azuis. 17 anos. Impressionantes olhos azuis aqueles (imagino-a muito bela, quase uma santa, pois sem conhecer a menina, posso refazê-la com artifícios tão meus quanto esta crônica).
Sentei-me num banco qualquer, um que me apresentou vazio, tão aconchegante que me reconfortei das dores da perda; determinei o término de minhas leituras matinais para organizar alguns afazeres, mas logo decidi, não era dia para se pensar em trabalho algum. Logo voltei a pensar em Ana, digo Olga! Perdão, mas são tantas meninas que morrem hoje em dia que os próprios jornais não dão conta de relatar...E acabo confuso.
Resolvi, então, procurar a menina do jornal, ou melhor, a família de Olga e quem sabe, saber mais sobre a doce criatura que me desconcertava. Aviltar-me-ia numa comédia em busca de antíteses que irremediavelmente não me alimentariam o corpo.
Como primeiro critério da fastidiosa busca, concentrei-me em informar-me pelo jornal, parecia um bom começo. No caminho ao Diário da Manhã (este era o nome do periódico) fui acompanhante de uma comitiva fúnebre, transtorno que tal qual corvo sedento redimia minhas lembranças, o resto era só esforço para não pensar tanto em Olga, se até as coincidências riam de minha investigação sem sentido. Ao que tudo parece, aquilo não daria em nada. Logo após livrar-me de minha esposa, que passaria algumas horas com amigos, continuei minha caçada. Fiz todo tipo de perguntas a transeuntes, taxistas, operários. Dei nomes falsos; no Diário ninguém sabia nada sobre Olga. Acho que até me escondiam qualquer coisa, quem sabe a menina era filha de algum abastado fazendeiro da região, e essa gente não gosta de curiosos e esses tipos são comuns em cidades do interior. Mas para uma morte anunciada num jornal isso parecia bastante controverso. Fui ao correio, quem sabe haveria alguma correspondência endereçada à menina.
- Por favor, há algo para Olga Maria da Silva? Não, não havia nada, e o carteiro disse ainda que pelo que se lembrava nunca havia entregado nada a alguém com este nome. O estranho é que Olga parecia não existir, numa cidade tão pequena, onde todos se conhecem. Consultei mais uma vez o jornal; estava tudo ali, eu não havia me confundido. Olga Maria da Silva, 17 anos... Estava exausto e não havia progredido em nada, nenhuma pista, nada.
Retornaria ao jornal para indignar-me contra o redator, repórter, ou sei lá o que do jornalismo de interior; como poderia existir homem com tamanha falta de escrúpulos, que inventava notícias tão impertinentes para vender aquele jornaleco, causando aborrecimentos desnecessários a homens que, como eu, só querem manter-se informados numa cidadezinha onde nada acontece. Diria a ele o que fazer com aquele tablóide de merda. Mas enfim descansaria, encontraria os amigos que há muito não via, sairíamos e nos divertiríamos, e talvez até escreveria um pouco, mas pela manhã conseguiria minhas explicações.
O único problema é que os anjos de Augusto teimavam em não me confortar:



O CAIXÃO FANTÁSTICO

Célere ia o caixão, e, nele, inclusas,
Cinzas, caixas cranianas, cartilagens
Oriundas, como os sonhos dos selvagens,
De aberratórias abstrações abstrusas!

Nesse caixão iam talvez as Musas,
Talvez meu Pai! Hoffmânnicas visagens
Enchiam meu encéfalo de imagens
As mais contraditórias e confusas!

A energia monística do Mundo,
À meia-noite, penetrava fundo
No meu fenomenal cérebro cheio...

Era tarde! Fazia muito frio.
Na rua apenas o caixão sombrio
Ia continuando o seu passeio!

Enquanto tentava ler um pouco; distrair-me com a poesia maldita de Augusto dos Anjos, minha mulher arrumava-se com gracioso esmero, era muito bonita, mas o tédio consumia todo o encanto. Hoje estava radiante; conheceria meus saudosos amigos de outras vagabundagens e fanfarras. A noite prometia ao menos ser empolgante, esqueceria Olga por algumas horas.

sexta-feira, março 04, 2005

HOMEM COMUM (ARIEL LACRUZ)


O ABISMO NO QUARTO 15/02/05 – fragmentos das últimas cartas de Allan Tonto

Voltei ao tempo nublado no quarto fechado na casa. A alma trancada na antiga cela. O dia aqui foi tempo suficiente para recobrar a condição de miserável, e seguir os primeiros passos rumo à depressão. É tudo tão absurdamente insosso e frágil a sanidade! Há um pequeno infinito de variedades dentro um absoluto nada.

Pela manhã, a solidão com a sua vozinha triste anuncia o novo dia. No mormaço ela paira, e ao meio dia, sua sombra incisiva me acomete. A tarde move-se ao vagar das nuvens que observamos da varanda, apenas eu e ela, inseridos no silêncio do avião distante. Anoitece, ela se personifica. Deita-se macia em minha cama, levemente massageia meu pescoço, e depois me estrangula.

Ontem fui ao jazz na Curva, e me entupi de drogas para anestesiar a superficialidade tão incomoda a que se resumia tudo visto pelo meu olhar entediado, naquela mesa cujo silêncio era a única palavra, e nem mesmo a música conseguia me tocar. E você ainda diz que eu sou um rapaz estável, que eu tenho tato para lidar com situações inusitadas sem perder a compostura. Mandei os músicos a merda, e fui.


ASFIXIA – rascunho psicografado encontrado sobre a cabeceira.

Na faculdade de comunicação a comunicação é a lei. O garoto tímido que se senta todos os dias no canto mais ermo da sala, e não fala nada, foi condenado. Dizem que antes de tornar-se humano foi uma pedra bem comportada e depois um brócolis.

O professor pede para que a turma repita: quem não se comunica se trumbica; a linguagem é a expressão da alma, portanto quem cala está... As garotinhas perfumadas, em seus círculos fechados repetem o mantra; os bobos repetem com bobagens, e os candidatos ao estrelato repetem num tom impostado, enquanto dentro da cabeça do garoto tímido, o titã Paulo diz-lhe que não dirá nada e nem dará explicação.

O garoto é mudo, revela-se somente ao caderninho que carrega aonde vai. É a escória do mundo e por isso faz-se vítima por todo o sempre. Fecha o último verso.

Foi desmascarado pelo professor que lhe disse ter o sorriso amarelo, desses que não se manifestam com todos os músculos da cara e nem expressão sentimento, apenas dissimula o desconforto.


DECIFRA-ME OU DEVORO-TE – retirado do diário de Allan Tonto

Voltando para casa, deparei-me com o monstro gerado no ventre das minhas mazelas. Fez a seguinte pergunta: "Quantos reis cabem no reino onde todos possuem a majestade?"

Devo considerar que uma parcela significativa de artistas, é naturalmente egocêntrica. Em sua maioria, são rapazinhos que guardam universos sublimados, e sendo capazes de revelá-los recorrendo unicamente aos talentos advindos da própria percepção e consciência, ao angariarem séqüito fiel de admiradores que dignifica a verdade que defendem, são, movidos pela vaidade, catapultados para acima do curso ordinário a que segue a grande massa. Balela.

Dizia-me a pouco um tal Fiódor que, qualquer consciência é uma doença, e, quanto mais aguda essa, mais grave a patologia. Era com a pseudo-consciência dos meandros da realidade que eu ingenuamente me alegrava. Inserido entre homens massa, que a muito perderam a sua capacidade crítica em benefício do bem estar, a veia artística conduzia-me ao centro que supunha merecer. Mais tarde, quando me percebi com maior clareza e precisão de detalhes, pude notar que só era realmente genial entre os idiotas. E como o centro deixara de ser uma posição inata, seria necessário que competisse para alcança-lo. Tenho verdadeira aversão aos espíritos que a todo custo buscam se destacar, porém, contraditoriamente afligia-me com torturas caso não lograsse a posição mais alta. Então caiu a ficha: sou reservado, muito tímido, deixo-me intimidar por qualquer estrangeiro que antes não se tenha intimidado por mim. Como poderia galgar posições? Nada fiz para conquistá-las pelo simples fato de que nas horas próprias não era divertido nem inteligente a altura. A verdade é que na minha inaptidão residia a ojeriza aos competidores.

Abriu meus olhos a reflexão exigida pelo enigma, mas não o bastante para desvendá-lo, por isso consenti com o olhar baixo à ação do agressor, e num só movimento fui prontamente devorado.

Até que hoje, agonizando em seu estômago, resolvi a questão. A resposta é simples, bem simples: a vaidade fez-me inventar concorrentes, portanto, a auto-estima deve se elevar até onde elevo a estima aos outros. O melhor lugar é ser feliz. Ser feliz. Feliz. Pena que já não há mais tempo. Sacanagem.


POPULAR – trecho recuperado da conversa entre Allan Tonto e Repugnante.

Repugnante:
Garoto como você é sem graça...
Allan:
E porque você ri?
Repugnante:
A sua desgraça me é divertida.
Allan:
É...
Repugnante:
E você consente... defenda-se porra, eu sei que é capaz.
Allan:
Não preciso, meu objetivo não é sair vitorioso.
Repugnante:
Mas que merda de ídolo você pretende ser?
Allan:
É que nem todo o jovem inteligente quer ser astro.
Repugnante:
Então permaneça sendo esse bostinha...
Allan Tonto:
Qual é a sua? A minha seriedade não é uma careta. Simplesmente não ladro, o mundo não tem que repercutir ao som do grito mais alto.
Repugnante:
E por isso se cala?
Allan:
Na verdade eu falo. Só não imponho. Garoto...