Chegamos hoje, cidade esta, tão receptível quanto uma lástima. Folheamos, juntos, o mesmo jornal; não se encontra nada, e o pior: há sempre muitas exigências, e, dispensáveis, lavradas no tédio diário; notícias, notícias. Ou talvez se encontra tudo, mas assim mesmo com o puro dissabor da desordem. Prefiro as coisas ordenadas, com dia e horas certas para acontecer. Coisas planejadas, simples. Sem o menor declive da ilusão corriqueira.
Mas a notícia que mais me acometera estragos (estes, irremediáveis!) fora um caso de morte. Olga estava morta. Mal sabia quem era essa moça, mas a notícia que avisava desgraçadamente aquele caso era insensata e me amargurava tanto que passei, naquele instante de interminável dor, a me condoer com pesar pelo sofrimento virtualmente drástico daquela família e de todos os conhecidos da menina Olga. Haveria em qualquer lugar um rapaz apaixonado que se mataria ainda nesta madrugada. A mãe, com sérios problemas no coração, corria algum risco de enfarto fulminante. As irmãs estavam todas desoladas, coitadinhas! Mas a morte também viria para Olga; moça de mais ou menos 1,70m de altura, 50 kg, tez tão alva, cabelos embebidos no negror noturno, olhos azuis. 17 anos. Impressionantes olhos azuis aqueles (imagino-a muito bela, quase uma santa, pois sem conhecer a menina, posso refazê-la com artifícios tão meus quanto esta crônica).
Sentei-me num banco qualquer, um que me apresentou vazio, tão aconchegante que me reconfortei das dores da perda; determinei o término de minhas leituras matinais para organizar alguns afazeres, mas logo decidi, não era dia para se pensar em trabalho algum. Logo voltei a pensar em Ana, digo Olga! Perdão, mas são tantas meninas que morrem hoje em dia que os próprios jornais não dão conta de relatar...E acabo confuso.
Resolvi, então, procurar a menina do jornal, ou melhor, a família de Olga e quem sabe, saber mais sobre a doce criatura que me desconcertava. Aviltar-me-ia numa comédia em busca de antíteses que irremediavelmente não me alimentariam o corpo.
Como primeiro critério da fastidiosa busca, concentrei-me em informar-me pelo jornal, parecia um bom começo. No caminho ao Diário da Manhã (este era o nome do periódico) fui acompanhante de uma comitiva fúnebre, transtorno que tal qual corvo sedento redimia minhas lembranças, o resto era só esforço para não pensar tanto em Olga, se até as coincidências riam de minha investigação sem sentido. Ao que tudo parece, aquilo não daria em nada. Logo após livrar-me de minha esposa, que passaria algumas horas com amigos, continuei minha caçada. Fiz todo tipo de perguntas a transeuntes, taxistas, operários. Dei nomes falsos; no Diário ninguém sabia nada sobre Olga. Acho que até me escondiam qualquer coisa, quem sabe a menina era filha de algum abastado fazendeiro da região, e essa gente não gosta de curiosos e esses tipos são comuns em cidades do interior. Mas para uma morte anunciada num jornal isso parecia bastante controverso. Fui ao correio, quem sabe haveria alguma correspondência endereçada à menina.
- Por favor, há algo para Olga Maria da Silva? Não, não havia nada, e o carteiro disse ainda que pelo que se lembrava nunca havia entregado nada a alguém com este nome. O estranho é que Olga parecia não existir, numa cidade tão pequena, onde todos se conhecem. Consultei mais uma vez o jornal; estava tudo ali, eu não havia me confundido. Olga Maria da Silva, 17 anos... Estava exausto e não havia progredido em nada, nenhuma pista, nada.
Retornaria ao jornal para indignar-me contra o redator, repórter, ou sei lá o que do jornalismo de interior; como poderia existir homem com tamanha falta de escrúpulos, que inventava notícias tão impertinentes para vender aquele jornaleco, causando aborrecimentos desnecessários a homens que, como eu, só querem manter-se informados numa cidadezinha onde nada acontece. Diria a ele o que fazer com aquele tablóide de merda. Mas enfim descansaria, encontraria os amigos que há muito não via, sairíamos e nos divertiríamos, e talvez até escreveria um pouco, mas pela manhã conseguiria minhas explicações.
O único problema é que os anjos de Augusto teimavam em não me confortar:
O CAIXÃO FANTÁSTICO
Célere ia o caixão, e, nele, inclusas,
Cinzas, caixas cranianas, cartilagens
Oriundas, como os sonhos dos selvagens,
De aberratórias abstrações abstrusas!
Nesse caixão iam talvez as Musas,
Talvez meu Pai! Hoffmânnicas visagens
Enchiam meu encéfalo de imagens
As mais contraditórias e confusas!
A energia monística do Mundo,
À meia-noite, penetrava fundo
No meu fenomenal cérebro cheio...
Era tarde! Fazia muito frio.
Na rua apenas o caixão sombrio
Ia continuando o seu passeio!
Enquanto tentava ler um pouco; distrair-me com a poesia maldita de Augusto dos Anjos, minha mulher arrumava-se com gracioso esmero, era muito bonita, mas o tédio consumia todo o encanto. Hoje estava radiante; conheceria meus saudosos amigos de outras vagabundagens e fanfarras. A noite prometia ao menos ser empolgante, esqueceria Olga por algumas horas.