VINDO DA ESCURIDÃO
Para V.
1
O CARRO DE polícia saiu da estrada municipal de três faixas e entrou numa pista secundária de terra batida que serpeava e descia os cinco quilômetros e meio que levavam até a casa de campo do Sr. Âmago, através do penhasco. Chegou ao final de uma descida e se aprumou num trecho reto de curta extensão que conduzia a uma curva fechada.
A novata Rachel Furlan guiava a viatura e o investigador de polícia George Loas sentava-se ao seu lado. Rachel estava inclinada na direção do volante, com os braços um pouco dobrados e forçando a vista através do pára-brisa embaçado.
No começo da noite, a 13ª Chefatura de Polícia do Município de Sade recebeu uma ligação da Sra. Dolores Mariano, que comercializava trigo e arroz com o Armazém Geral. Dolores era uma mulherzinha sabida de 61 anos que morava em um pequeno sítio na zona rural, ao norte da cidade. Ligara para polícia porque achava que alguma coisa de estranho estava acontecendo na casa de Marcos Âmago, outro velhote residente da zona rural, numa casa pequena localizada a cinco quilômetros da estrada municipal. George enviou três patrulheiros ao local – e mais tarde recebeu outra ligação. Era um problema maior do que ele esperava, era verdade. E põe verdade nisso.
Quando começaram a fazer a curva, o terreno em torno pareceu mudar: a encosta do lado esquerdo tornou-se mais escarpada do que antes, e do lado direito para lá a vasta ravina se retorcia para frente. Ramos desfolhados de arbustos iam ficando para trás como se fossem imagens de sonho. A luz dos faróis acesos bruxuleavam adiante deles, enquanto a viatura solevantava de um lado para o outro. As luzes vermelha e azul de emergência faiscavam no topo do capô.
Ao aproximarem-se da imensa casa de campo, Loas olhou pela janela e viu dois carros de polícia alinhados lá embaixo ao longo da estreita pista. Algumas poucas nuvens pareciam iluminar o céu.
Rachel estava com medo. Sabia que seu pavor não era visível – e sentia-se aliviada por isso. Nenhum de seus colegas sabia desse seu problema. Na verdade ela parecia uma pessoa que não saberia como ter medo. Tinha 27 anos, era baixa mas com uma índole de leão.
A despeito disso, contudo, ela estava com medo. Não era a possibilidade de estar próxima a um cadáver o que lhe dava arrepios. Ela temia ter que usar a arma pela primeira vez desde que se tornara uma policial, há um mês. Temia ser forçada a atirar em alguém, já que uma sensação agourenta de perigo avolumava-se de mansinho dentro dela. A pistola no seu quadril parecia pesar uma tonelada.
Ficou pensando se estaria chegando a hora em que a sua fraqueza seria revelada. Ter-se tornado policial fora talvez a única coisa não cautelosa que optara por fazer.
Com um solavanco brusco, a viatura parou. Rachel desligou o motor e virou-se para George, esperando alguma ordem.
Loas levantou a gola do casaco, lutou contra a maçaneta e mergulhou no vento gelado da noite. Era um investigador de polícia com a fama de brilhante espalhada pelos quatro cantos do estado. Um homem alto e com quase cem quilos distribuídos entre os ombros enormes e o peito saliente.
Não gostara de Rachel desde o primeiro momento em que se encontraram. A menina era forte, ágil, resistente, mas não possuía a firmeza sólida de um policial. Parecia lerda de raciocínio – e falava com deliberação controlada, o que levava a entender que ela falava daquele jeito por ter uma certa dificuldade em formular os pensamentos.
Mas talvez estivesse sentindo esse desgosto repentino por ela apenas porque não era homem de fazer amizades facilmente. Tinha mania de trabalho – e não lhe sobrava muito tempo para essas particularidades. Ou havia então aquela outra hipótese, aquela que nunca some da sociedade: Rachel era uma mulher num serviço de homem (isso estava certo?). Lembrava por exemplo do que acontecera minutos atrás, quando ainda estava na delegacia e exigia um oficial para acompanhá-lo na investigação. Rachel foi a indicada, saindo de trás do balcão que atravessava a sala de atendimento com um sorriso iluminado.
— Sou eu, senhor — disse ela, radiante.
George percebeu no mesmo momento que tratava-se de uma novata. Primeiro trabalho de campo, na certa. Talvez o segundo na maior das hipóteses.
— Tem certeza que quer fazer isso, menina?
— Sim, senhor. Estou ansiosa para isso.
Cunha, um dos patrulheiros enviados por George – e o que fizera a Segunda ligação para a delegacia, revelando a gravidade do problema – saiu da casa de Âmago com a aproximação do investigador. Walter Cunha era um homem ainda moço, bem escuro e com o cabelo curto demais para as suas feições largas. Uma única gota de suor lhe correu pelas costelas. Estava mais assustado do que nunca em toda a sua vida – ou como nunca imaginara poder estar. Sade era uma cidade como todas as outras, uma cidade grande. E Cunha sabia muito bem como era difícil manter a ordem num lugar com essas particularidades. Já tinha enfrentado de tudo para manter a lei (ou apenas imaginava ter enfrentado), mas desta feita estava assustado. Todos diziam que ele era um dos mais competentes policiais de Sade e ele sabia que os companheiros estavam certos. Ele tinha um orgulho justificável, sem falsa modéstia. Mas agora era uma situação diferente e ele estava de certa maneira... apavorado!
George Loas correu na direção da varanda da frente da casa de campo com os ombros inclinados protetoramente e as mãos quadradas desaparecendo nas dobras do casaco.
Rachel “A Novata” Furlan tirou chave da ignição e saiu, contornando o automóvel e parando, por fim, quase contra a vontade para apanhar a máquina fotográfica no porta-malas. Era um procedimento padrão, dissera o investigador na iminência de uma risadinha. Teria que tirar fotos do cadáver para prósperas investigações sobre o caso. Uma ova para Loas! Aquele nojento estava sacaneando com ela. Sim, Rachel percebera desde o momento em foi designada para a investigação. Talvez o investigadorzinho-com-fama-no-estado-inteiro ali a estivesse desafiando e ela aceitaria o desafio.
Virou-se na direção da varanda da casa de Marcos Âmago ainda a tempo de espiar o que estavam falando.
— ...uma vítima, senhor! — continuava Cunha transpirando como um porco. — Graças a Deus... somente uma!
— A identidade foi confirmada?
— Sim. Realmente trata-se do Sr. Âmago. Vivia aqui desde a infância.
— Eu o conhecia.
— Sinto muito, senhor.
George hesitou por um momento, retirando uma das mãos das dobras do casaco e esfregando o nariz.
— Interrogaram a Sra. Rita?
— Sim. Disse ter ouvido gritos vindos da casa, então ligou para nós.
— Apenas isso?
— Exatamente, senhor.
George virou-se por um segundo e viu a novata se aproximando pela estrada estreita de grama. Trazia em seu colo a valise onde era guardada a máquina fotográfica. Tropeçou em uma pequena saliência da grama, mas recuperou equilíbrio e continuou marcando na direção deles.
— Alguém das redondezas viu o corpo? — perguntou o investigador para Cunha.
— Não, senhor. Parece que a única testemunha que temos é Rita Mariano.
— E quando a vítima foi morta?
— Até onde podemos dizer, há cerca de duas horas.
George parou por um momento, quando Rachel se aproximou às suas costas. Depois virou-se para o patrulheiro e perguntou:
— Onde está o corpo?
— Venha comigo, senhor — foi a resposta.
Cunha conduziu o investigador para dentro da imensa casa de campo. No cheiro de terra molhada e folhas, os insetos tagarelavam. Por um instante ficaram mudos, como se uma força sobrenatural estivesse atuando sobre eles.
Os três estavam agora numa sala de mobília escura. O vento borrifava as janelas como se fosse grãos de areia. Rachel sentia a boca seca e seus olhos como bolas de gude quentes. Do outro lado da sala havia duas cadeiras atiradas no chão e com o estofamento esfolado. As almofadas do sofá haviam sido dilaceradas e aparecia o enchimento do estojo. Uma janela quebrada deixava entrar a noite por onde havia cortinas soltas e caídas.
— Deus... O que aconteceu?... — Rachel começou a murmurar.
Um raio de luz vinha do outro lado do cômodo, da sala de jantar. Uma claridade desagradável que rastejava pelas paredes, por baixo e pelas laterais de uma porta. Os móveis estavam manchados de uma descomunal quantidade de sangue e também havia muito sangue, já seco, formando uma poça larga sobre o carpete de tecido grosso. Havia quadros arrancados da parede e um toca-discos derrubado no chão.
— Há um cheiro ruim por aqui — advertiu Loas.
— Você precisava ter sentido o fedor de antes — Walter Cunha, logo às suas costas.
— Que tipo de cheiro?
— Urina e fezes.
— Da vítima?
— Acho que não — respondeu o patrulheiro com um olhar brilhante. — Pode ser da coisa que matou este homem.
— Você quer... dizer do homem que o matou, não é isso? — frisou Rachel apanhando-o pelo ombro.
— Não pode ser um homem o que fez isso, senhorita.
— Não?
— Olhe você mesma!
Marcos Âmago estava esticado no chão, de lado, no centro da sala. As pernas apareciam puxadas para junto da barriga, os ombros curvados para diante e os braços cruzados sobre o peito. Tinha os olhos esbugalhados. A boca estava arreganhada, congelada para sempre num grito mudo.
Uma laceração larga começava no ombro direito e terminava no torso do Sr. Âmago ali. No final do ferimento, a carne se reduzia em fatias minúsculas. No centro, o ombro fora deslocado, expondo os ossos pálidos e parte da jugular dilacerada. Havia marcas novas e antigas nas coxas e nas canelas. Manchas arroxeadas, como tinta de caneta no joelho e no tornozelo da perna direita.
Um dos braços estava machucado também e o osso projetava-se pela pele acinzentada. Acima do joelho esquerdo aparecia um vergão vermelho, reduzido a um ninho de machucaduras e arranhões que, pelo que viam, só poderiam ser marcas de dentes.
— Parece que foi atacado por uma fera — Foi o que Loas disse, protegendo o nariz com um lenço branco e examinando a ferida.
— Foi o que eu quis dizer — disse Cunha. — Não pode ter sido obra de um homem. É... algo desumano!
O investigador tocou nos ferimentos roxos intumescidos do braço do cadáver. As pontas dos dedos afundaram, deixando reentrâncias.
— Uma história terrivelmente estranha — balbuciou ele.
Não encontrou nenhuma sujeira no ferimento, apenas uma espécie de espuma pegajosa. E tinha um odor confuso. Ele franziu o nariz, tentando abafar aquele fedor pungente.
— Parece uma mordida — começou George. — Por outro lado, o corpo não apresenta arranhões generalizados, típicos de um ataque animal.
— Olhe as mãos, senhor — apontou o patrulheiro afobadamente.
Havia cortes pequenos, rasgos nas palmas e pontos arroxeados nos punhos e antebraços da vítima. Também havia vestígios de sangue debaixo das unhas. Levantando os olhos, ele deteve-se outra vez nos restos de espuma pegajosa existentes no ferimento. Tocou-a, esfregando entre os dedos.
— Parece saliva — concluiu.
Respirou fundo, a situação não era nada boa. Não encontraria o suficiente para informar o que havia matado Marcos Âmago, embora tivesse evidências para deixá-lo intrigado como o diabo.
Ainda estavam parados no centro da sala e Rachel segurava a valise com a câmera fotográfica junto do peito. Até hoje, ela jamais havia considerado sua própria mortalidade e havia aceito que saúde e bem-estar era por princípio um direito seu. Agora era diferente – e, ao ver-se ali contemplando o outro-lado de perto, sua consciência fora anulada e já não sabia o que era certo e errado.
Levantando-se um pouco e afastando-se do corpo, George Loas fitou Rachel. Olhou para ela com seus olhos irradiando um desafio triunfante, e perguntou:
— Você está bem, menina? Quer vomitar?
Ela estava lutando para que isso não acontecesse.
— Não. Não vou vomitar. Estou bem.
— Tem certeza?
— Tenho, senhor.
Examinando o chão, o investigador levantou-se sobre os joelhos e caminhou primeiro até uma ponta da sala, depois até a outra. Quando deu a volta na escrivaninha, seus joelhos vacilaram, mas ficaram firmes quando ele atravessou a sala em direção ao corredor.
Viu sangue esparramado pelo chão – já tinha tomado quase todas as bordas do tapete num desfiladeiro vermelho. Encontrou o que parecia ser uma gordurosa impressão de uma mão ensangüentada na parede. Sangue embebia as tábuas do assoalho do corredor.
A vítima devia ter ficado parada ali por um bom tempo, atordoada e imobilizada pela violência e talvez tentando sem sucesso estancar os ferimentos que não paravam de sangrar.
— Descobriu alguma coisa, senhor? — perguntou Walter, acercando-se dele
— Apenas suposições, Cunha. Nada mais.
O suor pingava no canto dos olhos de Loas, picante e distorcendo sua visão. Ele seguiu com cuidado a repulsiva trilha vermelha que passava pelo banheiro do corredor, dava a volta próximo à escrivaninha e parava no centro da sala, onde agora estava o cadáver.
Tentando não pisar no sangue, ele baixou os olhos para o tapete apenas por um segundo, para ver onde as marcas de sangue eram menores e mais falhas do que em outros lugares do corredor.
— Beline e Montezano estão vasculhando a mata — disse Cunha para interromper o silêncio que se assenhorara deles momentaneamente.
— Beline e Montezano? — repetiu Loas com inflexão de incredulidade na voz..
— Isso mesmo, senhor.
— Eles é que são os dois patrulheiros que vieram com você? — perguntou fazendo uma careta de desaprovação.
Beline Coelho e Carlos Montezano eram duas pessoas que não tinham conhecimento o bastante para compor uma equipe de investigação. Geralmente ocupavam o cargo de atendimento na delegacia, se envolvendo muito pouco com o trabalho bruto da polícia de Sade. Foi uma surpresa para George saber que Cunha havia selecionado os dois para acompanhá-lo nesse caso.
Outra coisa alfinetava a cabeça do investigador, além da “imbecilidade” dos outros dois patrulheiros que vasculhava a mata (em busca do quê, exatamente?): ele sabia que todas as investigações que envolviam homicídios afetavam o policial num nível profundo e pessoal, porque elas ecoavam os piores acontecimentos ocorridos em sua vida.
Há quatro anos, chegando em casa depois de um dia de intenso trabalho, Walter encontrara sua esposa deitada no chão da cozinha de sua casa. Morrera de uma hemorragia cerebral maciça. Ficara arrasado. Durante algum tempo a perda o deixara completamente abalado, confuso e deprimido. Aos poucos aceitara a morte da mulher e descobrira de novo como sorrir e achar graça. Loas temia que aquela investigação reabrisse essas feridas.
— Há quanto tempo aqueles dois estão lá? — perguntou o investigador, voltando teatralmente sua atenção para o corpo.
Atrás de Loas, Rachel hesitou. Desejava ir embora, mas não encontrava oportunidade.
— ANDE, CUNHA! HÁ QUANTO TEMPO ELES ESTÃO NA MATA? — explodiu George..
O policial piscou e ao seu lado a policial novata pulou num só tempo, começando a tremer e a chorar, sem que percebessem. Não poderiam perceber, ela não queria perder o trabalho. Enxugou os olhos ligeiramente enquanto o patrulheiro respondia à pergunta:
— Desde que chegamos aqui, senhor — O seu rosto parecia colar de tanta tensão.
— E quanto tempo tem isso?
— Mais ou menos uns quarenta minutos.
— Quarenta minutos?! — repetiu Loas, perdida toda a sua paciência.
Ele baixou os olhos. Enganchados no cinto do patrulheiro estavam a pistola negra e logo à sua esquerda a lanterna de cabo curto e lâmpada larga. Walter Cunhal olhou para ele esperando um lampejo de amabilidade. Porém, não houve nenhum. Em vez disso, George silenciosamente se inclinou na direção dele, destravou as presilhas do seu cinto e apanhou a sua lanterna. Quando foi acesa, a lanterna imprimiu uma faixa prateada sobre o peito de Cunha, que recuou como se essa luz fosse um tipo de lâmina capaz de cortá-lo. Olhou para o investigador com surpresa fleumática, como se isso nada tivesse a ver com ele.
A novata aproximou-se e parou entre os dois policias imóveis que se entreolhavam em silêncio.
— O que estão pensando em fazer?
— Iremos atrás dos dois lá na mata — respondeu George Loas, sem olhar para ela.
Rachel tremeu. A possibilidade de encontrar o assassino do Sr. Âmago o perturbava. Sentiu um vácuo nos pulmões como se não respirasse há bastante tempo. Um aperto gelado que ia da virilha ao baixo abdômen, subindo pelas costas como um raio de aço fundido.
— Não está pensando em chorar, não é, mocinha? — perguntou o investigador com indiferença.
Ela batalhava para não chorar.
— Desculpe, senhor. Não consigo...
— Ora, ora. Não tenha vergonha, menina. Pode chorar na nossa frente — disse isso e abriu os braços triunfante.
Aquilo tudo era demais para Rachel. A novata irrompeu em lágrimas, lançou a valise com a máquina fotográfica por cima do tampo da mesa de mogno e marchou em direção à porta de saída, até ser devorada pela massa opulenta da noite lá fora.
George a seguiu com os olhos. Por um momento achara que foi brusco demais com ela e ficou observando-a enquanto ia até a viatura e mergulhava o rosto por cima do capô, na certa se arrependendo do dia em que resolvera se tornar uma oficial de polícia. Por trás dela, a noite parecia uma placa de chumbo escura onde as estrelas desapareciam espantosamente por trás do grande reservatório de escuridão. A Lua era um fantasma devorado pelas sombras.
Ficou examinando as folhagens por alguns segundos. Não ouvindo e nem mesmo vendo coisa alguma de extraordinário, teve a sufocante certeza de que Beline e Carlos Montezano não voltariam. Ficariam naqueles arbustos para sempre.
A hipótese era terrível.
Deu as costas para a porta no momento em que sentiu um movimento entre as folhagens. Voltou-se novamente e fixou os olhos na relva baixa por trás de Rachel Furlani, que agora acendia um cigarro. Permaneceu olhando para fora, sem encontrar nada suspeito desta feita. Concluiu que tinha imaginado o movimento e que aquela sensação agourenta de estar sendo observado por alguém era apenas sua imaginação racionalizando seus pensamentos.
— O que foi, senhor? — quis saber Walter.
— Sh — fez o investigador, inclinando a cabeça e mantendo os ouvidos atentos.
Desta vez ele detectou um roçar nas folhas, o estalido de um galho lascando-se e o ranger da folhagem seca sendo esmagada contra o chão, mas o som vinha da parte de trás da casa, no lado contrário em que a novata estava. Esperou e ouviu um ruído oco, monótono e horrível de alguma coisa grande muito perto deles.
A respiração rouca no mato foi reforçada por um ganido assombroso. Um ruído sibilante e sombrio, perturbador. Franzindo as sobrancelhas, George começou a desabotoar a presilha do coldre onde mantinha o 38. carregado. Voltou-se por um momento para a porta, a ponto de certificar-se da segurança de Rachel.
— Mantenha os olhos abertos, companheiro — advertiu ele enquanto Cunha engatilhava a pistola.
Por alguns intermináveis segundos o patrulheiro não conseguiu compreender por que aquele ruído tinha causado tal fluxo de medo em Loas. Então entendeu que a ambigüidade do som o deixara assustado e quanto mais ouvia aquilo, mais ficava certo de que não era necessariamente um som animal, nem um som humano. Mas se não era nenhum dos dois... então o que diabos era?
— O que é isso, chefe? — Walter geralmente utilizava o “chefe” quando estava na iminência de um ataque de pânico (todos sabiam disso no seu departamento). E naquele momento, o patrulheiro estava a um passo do precipício.
— Seja o que for, não é Beline. E não se parece nada com Montezano.
2
RACHEL, AINDA INCERTA sobre o que acontecera minutos atrás, esfregava os olhos para limpar parte das lágrimas. Ainda olhando para baixo, para a ponta das botas do uniforme de polícia, ela tirou uma baforada do cigarro entre seus dedos compridos e trêmulos.
A vontade de chorar ainda era uma companhia constante. E uma idéia absurda, mas nem um pouco desinteressante, lhe ocorreu: entraria numa das viaturas e pisaria no acelerador, fugindo para um lugar bem longe dali. Fugiria com o pé na tábua, sem olhar para trás em nenhum instante.
Se preparava para tirar outra baforada do cigarro quando ouviu o primeiro disparo, acompanhado de um segundo e de um terceiro. Rachel ficou imóvel. Enterrou os calcanhares no chão, respirando depressa e com os olhos muito abertos. Sua pele de repente pareceu entremeada de fios elétricos que davam a sensação de estar fervilhando.
― Que porra é?... ― começou a balbuciar, quando levantou a cabeça na direção da casa de campo e viu o que de fato estava acontecendo.
Através do vão da porta, viu quando George Loas endireitou-se bruscamente e ergueu o 38. Na direção de qualquer coisa lá dentro. Viu quando ele fez menção de girar e correr para fora, com surpresa e medo – a sola de seus sapatos fazendo um som cavo no assoalho quando ele deu um passo apressado para frente e foi agarrado por algo escuro.
Rachel percebeu que estava gritando, possuída por um júbilo primitivo e inarticulado, um júbilo selvagem que certamente seria encontrado em um urso, mas nunca num ser humano, principalmente em alguém como ela.
Continuou imóvel quando aquela coisa negra irrompeu da escuridão com força e velocidade brutais. Com a mesma rapidez com que foi agarrado, o investigador foi arrastado para a escuridão do interior da casa.
Por um momento Rachel pareceu flutuar numa imensidão pálida e vazia. Mas logo sentiu-se lançada de volta, num aperto frio no estômago como se sua mente estivesse sendo recuperada graças a um veio de chumbo derretido injetado em algum ponto de seu crânio. Viu quando algo empurrou a porta pelo lado de dentro e a fechou. George e Walter estavam presos lá dentro... com aquela coisa desumana.
Rachel gritou. Bateu contra a porta, que agora estava trancada. Começou a esmurrá-la. Só conseguia esmurrar a porta e ouvir os gritos de um dos dois lá dentro (ou talvez dos dois). Gritos embargados e violentos.
Agarrou a maçaneta comprida da porta com as duas mãos, mas ela não se movia. Não girava. Os gritos penetrantes aumentavam, diminuíam e cresciam, ficando outra vez mais altos, mais estridentes e mais dolorosos.
A janela na frente da casa era coberta com persianas, mas as plaquetas não estavam totalmente cerradas e, de onde estava, conseguia divisar os contornos de uma parede escura lá dentro. Mas não conseguia vê-los. Deus! Não sabia o que estava acontecendo com eles! Deus, por favor! Deus!...
Inclinou-se mais sobre a janela e através das brechas entre a persiana, ela viu a sala de estar... e uma inexplicável e monstruosa crise de fúria a acometeu. Seu corpo retesou-se. Sua mente estava em branco, como se aquela raiva anormalmente forte estivesse sobrecarregando a seus pensamentos. Oh, Cristo Jesus! O que diabos estava acontecendo lá dentro?
Os gritos acabaram. Rachel inclinou-se mais sobre a janela, explodindo em choro. Semicerrou os olhos e, com o nariz quase tocando o vidro, conseguiu divisar o que parecia ser George Loas caído no chão. Ele estava com as pernas estendidas para a frente, a cabeça virada para um lado e o rosto oculto nas sombras. Uma grande laceração atravessava-lhe o peito e fluidos de sangue formavam uma esteira inunda em torno dele. Mesmo a distância, a novata pôde ver os órgãos internos através do rasgão profundo no peito rebentado do investigador.
Apavorada e com os olhos turvos graças às lágrimas, tentou deslizar a janela para a direita, mas ou estava trancada por dentro ou demasiado enferrujada. Foi para o lado direito, esperando encontrar outra janela, mas ao passar diante da porta deteve-se e outra vez experimentou a maçaneta. Não abriu.
Recuou um passo e chutou a porta com toda força. Uma vez, depois outra. Imaginava que era apenas um ferrolho comum, não muito resistente – e devia ser arrombado facilmente. Mas resistiu.
― Droga! Alguém me ajude! ― gritou em plenos pulmões, mesmo sem esperança de encontrar ajuda. Recuou e desferiu outro pontapé contra a porta. ― Abra, porra!
Ao mesmo tempo que tentava arrombar a porta, Rachel tinha vontade de sair logo dali. A proximidade da morte causava-lhe pânico e roubava-lhe o ar dos pulmões.
Ajude-me!, pensava ela. E então, contra os seus próprios princípios, ela estilhaçou a vidraça da janela com um golpe de cotovelo. O ruído do vidro se partindo ressoou alto e dissonante.
Embora isso fosse um caso extremo, de emergência, ela sentia-se como um bandido invadindo a privacidade de alguém. Arrancou alguns pedaços do vidro partido na moldura – e enfiou a mão para dentro, abrindo o trinco da janela.
Não foi fácil abri-la. Estava tremendo demais por causa do medo e os olhos eram agora uma confusão de imagens Além disso, as dobradiças superiores estavam enferrujadas e em alguns lugares ao longo da moldura a tinta havia se transformado num grude, pregando a folha da janela. Com força, as dobradiças rangeram e a janela cedeu.
Subindo com dificuldades pelo peitoril. Atrapalhou-se um pouco com as persianas, empurrando-as para os lados. O corpo ainda estava no chão, de lado e rijo, de uma palidez marmórea. O rosto achava-se congelado numa grotesca careta.
― Oh, droga, droga!...
Se encostou num armário de canto, necessitando de apoio. Tropeçou e oscilou desajeitada. Sentiu ânsias de vômito e logo uma golfada quente subiu sua garganta. Quase vomitou sobre si própria, virando-se por pouco.
O fedor pungente de urina agora vinha de todos os lados. E Rachel não tinha a menor idéia do que devia fazer agora, ali dentro. Ficou parada, limpando o cantos dos lábios com as costas da mão e olhando atentamente para o corpo do investigador.
Que tipo de criatura seria capaz de fazer uma coisa dessas?, perguntava-se, sem conseguir arrancar os calcanhares do chão Olhou com desgosto para o rasgão no tórax de Loas. Os órgãos internos, azulados, pareciam fora de ordem. Pareciam empurrados para os lados.
― Merda, merda... MERDA!
Quando começou a se dar conta de que Walter Cunha não estava em lugar nenhum, Rachel escutou um ruído abafado seguido por um longo rangido, à sua direita. Virou-se rápida e indefesa. Estava a quatro passos de uma porta dupla na parte oposta da sala. Eram portas de carvalho, que abriam para dentro.
― POLÍCIA! QUEM QUER QUE ESTEJA AÍ, SAIA COM AS MÃOS PARA CIMA!
Então fora de sua visão, algo se moveu nas sombras. Entrevisto. Percebeu algo que se movia no espaço mais escuro na sala, a uns três metros dela. Não sabia dizer como realmente percebeu. Não ouvia nada que não fosse o eco de sua respiração acelerada ou os estrondos em seus ouvidos – estrondos esses que ela sabia perfeitamente ser o seu coração batendo contra as costelas. Também não enxergava grande coisa. Mas ao olhar mais atentamente para a escuridão, teve certeza de que algo estava movendo-se, mudando de posição.
― PARADO AÍ! EU ESTOU FALANDO SÉRIO ― gritou para a coisa, antes de perceber que em momento nenhum havia empunhado a pistola.
Atrás do medo refletido no seu rosto, havia uma mistura de raiva e ódio. Ela gritou e virou o corpo para enfrentar fosse o que fosse, mesmo que com as mãos vazias. Então percebeu que não tinha coragem suficiente para enfrentar... aquilo.
― Oh, meu Santo Deus!
Apanhado numa luminosidade derradeira, uma coisa estranha arrastava-se pelo chão, um pouco para a sua esquerda. Uma aglomeração de tecidos informes. Uma massa viscosa, escura, que se revolvia. Tinha o tamanho de um homem, mas não era um homem Era uma massa de carne pulsando, translúcida, como se fosse revestida com algum tipo de pele membranosa.
― Deus, Deus, Deus!... ― repetia Rachel inconscientemente, enquanto introvertia para trás com o coração pulando na garganta.
Ouviu-se um guincho, um rosnar. Um coágulo de tecidos ressumbrou do centro daquela coisa gelatinosa. A novata não podia acreditar que tudo aquilo era um homem se arrastando pelo chão como uma geléia viva e intumescida. Aquilo era Walter Cunha.
Inesperadamente, os olhos dele se abriram, olharam para a esquerda e para a direita, desconfiados, e encontraram-na.
― Mate-me ― murmurou a criatura embargadamente, num sussurro de agonia.
Rachel olhou-o. Miseravelmente, os lábios daquilo tremeram convulsivos como se precipitassem um grito.
― Por favor, mate-me.
3
― MATE-ME!
O fio vermelho do medo tornou-se arroxeado na mente de Rachel. Deu um passo para trás, o pânico quase tão profundo quando o precipício o qual ela seria arremessada no Juízo Final. O calcanhar se arrastou no assoalho, numa pequena liberação da tensão enquanto o terror passava por seus olhos.
Cunha ainda se aproximava. Tinha se curvado para frente num salamaleque – e por um instante seu rosto saiu das sombras. Rachel soltou um guincho quando a claridade brotou sobre o patrulheiro. Olhos contornados de negro e pavorosamente brilhantes observavam-na de órbitas fundas e envoltas em rugas gordurosas. O canto dos lábios erguiam-se em contornos tortuosos e secos, revelando a gengiva escura e os dentes inacreditavelmente descoloridos.
Uma das mãos gordurosas ergueu-se na escuridão, semivislumbrada. Os lábios de Cunha se rasgaram para cima e para baixo – e George viu pequenos reflexos no fundo de sua boca. Reflexos verdes como se alguma lâmpada brilhasse na raiz de sua garganta.
Estava sonhando. Pronto. Era isso! Abriu mais os olhos e rezou para que fosse realmente um sonho, sim, queria que fosse. Mas ela sabia que não era nenhuma alucinação. Era real.
― Saia! Vá embora! ― gritou erguendo as mãos diante dos olhos como se pudesse desfazer aquela imagem. ― ME DEIXE EM PAZ!
Os traços informes do estranho rosto enrugado da criatura pareceram esticar para cima. Os ombros curvados subiam e desciam.
― Pelo amor de Deus, Vá embora! ― Rachel, desta feita parecendo encolher-se sobre si própria e mais uma vez explodindo em lágrimas.
A criatura não se moveu. Continuou nas sombras, a silhueta delineada nos fiapos de luz que atravessavam as janelas escuras. E então disse algo que surpreendeu Rachel de tal maneira que de início ela não conseguiu compreender:
― Não entende mesmo, não é? Não entende nada.
Aquela coisa chegou a rir. Por um momento não era mais Cunha e sim a coisa que havia se apossado de seu corpo.
― Saia! Saia já de perto de mim!
― Como você pode ser tão ingênua?
― Saia!...
― Mate-me.
Os olhos da coisa se abriram mais. Eram olhos dolorosamente reais e penetrantes, cheios de dor, medo e sofrimento. Pareciam duas fendas estufadas por trás das órbitas. Rachel mantinha cabeça erguida e os ombros tão jogados para trás que os tendões empalideciam em torno do pescoço, orlados de profundos triângulos de sombra na raiz do queixo.
O vento soprava forte e as persianas batiam. A casa gemia em volta deles como um velho automóvel numa pista esburacada. O medo latejava no estômago como lascas de madeira numa fogueira.
― Vá embora, por favor! ― vociferou Rachel enquanto se afastava de Walter. ― Você não é real! Não pode me atingir!
Feche os olhos e ele desaparecerá, disse consigo mesma – e o fez. As mãos se crisparam quando encurvou um pouco os ombros para frente. Nada ali, nada, nada, nada ali!... Mas quando voltou a abriu os olhos, percebeu que a criatura havia esticado a cabeça para a frente, revelando a testa comprida que se alongava para cima como um bulbo vegetal. Os olhos eram simples cavidades negras, brilhantes e finas, como o filamento de uma lâmpada num globo de perfeito terror.
Então a coisa se afastou outra vez – e seu rosto disforme tornou a desaparecer miseravelmente nas sombras.
― Você não é como eu esperava. É fraca demais.
Rachel abanou a cabeça. Junto de cada palavra emitida por aquele ser, vinha um chiado opulento. Tentou olhar bem para ele, para descobrir o que ainda restava de Cunha debaixo de toda aquela lavagem de pele e órgãos disformes. Por um instante, os olhos daquela coisa pareceram girar para cima e se transformar em cavidades úmidas e escareadas.
― Oh, merda! ― balbuciou Rachel, não podendo mais segurar. Uma cascata de vômito deixou gotas cor de rosa na parte da frente de seu uniforme.
Havia momentos em que o seu medo se assemelhava a um enorme relógio de bronze que nas vezes em que seu pêndulo marcava alguma hora, temíveis criaturas despertavam em seu imo. Aquele pêndulo terrível estava indo de um lado para o outro agora – e os ruídos dos demônios dentro de sua cabeça iam se tornando cada vez mais intensos a cada segundo.
― Por favor, Rachel, mate-me! ― gritou a criatura, mas era a voz de Cunha o que a novata ouvia em sua agonia febril.
Os olhos daquela coisa não pareciam fendas agora, revelavam uma expressão de dor e de clemência. Ele ganiu – um ganido que morreu num gorgolejo borbulhante. A carne escura do rosto ressumbrou ao redor dos olhos. A pele chiava, espumava e dissolvia-se, tornando-se bulbosa e macia.
O coração de Rachel acelerou. O estômago revirou, com novas ânsias de vômito. Aquele pêndulo horrível chacoalhou miseravelmente em seu íntimo e as criaturas malévolas que haviam despertado em seu subconsciente avançaram bruscamente pelas dimensões de seu medo.
4
WALTER CUNHA SE flexionava, latejava e se contorcia. Um par de olhos mosqueados cheios de ódio projetou-se da carne informe do seu rosto. Olhos turvos, ovais e leitosos, com pupilas negras alongadas.
― PARADO AÍ! ― gritou Rachel, tentando alcançar a pistola na cintura com a mão trêmula.
Mas a coisa não parou.
― PARADO AÍ OU EU ATIRO! EU JURO QUE ATIRO!
A aglomeração de carnes se retorceu lentamente no rosto de Cunha e suas feições foram recompostas. As faces escuras, a boca de lábios finos e a aparência gordurosa. O nariz comprido, os olhos negros – os músculos estavam inteiros de novo. Incrível. E antes que Rachel pudesse ter alguma reação, ele avançou.
As botas de Rachel arrastaram surdamente nas tábuas do assoalho. Ela ofegou subitamente. Estivera tão totalmente congelada pela visão de Cunha que tinha esquecido de respirar. Tentou gritar e nada. Néris. Nenhum som escapava de sua garganta.
Por um momento conseguiu resgatar uma força inarticulada que estava esquecida em algum ponto dentro dela. Marchou rápido pela sala, na direção de uma janela mais comprida à sua direita, escutando os passos molhados da criatura logo às suas costas. Abaixou a cabeça, cruzou os braços na altura do peito e se lançou de lado contra a vidraça.
Numa avalanche confusa de vidros e madeira, rolou lateralmente ao longo dos tufos de grama recobertos de lama até virar com a barriga para cima, do lado de fora da casa. Arquejando e com o coração sacolejando furiosamente, ela rezou para que aquela coisa não a seguisse, que não saltasse lá de dentro.
O som dos vidros ainda se estilhaçando no chão a fez guinchar. Lembrou-lhe o som de um crânio se partindo contra a quina de uma mesa. Concluindo que ainda corria perigo, respirou fundo e levantou-se num pulo. Tinha que chegar até a viatura e sumir dali. Tinha que avisar os outros. Deus, o que havia acontecido com Cunha e George Loas? E onde estavam Beline e Montezano?
Foi aos tropeções até a viatura e abriu a porta, se enterrando no banco do motorista. Tentou duas vezes enfiar a chave na ignição, mas tremia muito. Então parou, ainda chorando, e respirou fundo. Depois tentou a terceira vez e a tentativa teve sucesso. Girou a chave, ligando o motor da viatura.
― Cristo, por favor, me tire daqui ― não parava de pedir.
Os pneus trituraram a lama até a camada mais dura. O carro se arremessava para a frente e para trás, mas não saia do lugar. Rachel estava perdendo o controle. O que faria se Cunha se aproximasse agora?, pensou. E se ele saísse de onde estava escondido, como uma caixa de surpresa assassina?
Firmando o pé no acelerador, espreitou por cima do pára-brisa. A casa de campo de Marcos Âmago continuava imóvel e inalterada, enquanto a noite rugia em suas paredes.
Engatou a ré, com força, e virou o volante para o lado em que o carro pendia. A viatura deu uma guinada para a frente, depois para trás. Forçou uma subida brusca, espalhou um leque de lama para os lados, depois voltou a cair para a frente.
― Merda! Não acredito nisso!
A estrada estava uma desgraça. O carro derrapava das formas mais loucas, os pneus rolando imponentes na terra. Então, um gemido. Rachel virou o rosto num repelão. Um lado, depois o outro. Mas não havia nada em parte alguma.
― QUEM ESTÁ AÍ? ― chamou ela, hesitante.
Houve outro ruído, ligeiramente embriagado, que se ouvia perfeitamente. Ela virou a cabeça devagar.
― Quem?...
O que aconteceu em seguida foi de uma velocidade cancerígena. Em primeiro lugar, alguma coisa bateu no pára-brisa do carro com violenta força. Rachel girou o corpo, assustada, perdido todo o seu controle. E mais uma vez aquela coisa bateu no vidro. Em segundo lugar, o carro estremeceu e quando menos se esperava as janelas explodiram com um impacto surdo. Os estilhaços zumbiram caindo sobre os ombros dela, mas a maior parte caiu pelo lado de fora.
O coração disparou no peito e um fluxo de adrenalina aguçou seus sentidos com força dolorosa. Rachel afundava o corpo contra a poltrona, ouvindo aquele pêndulo troar repetidamente em seus ouvidos. Foi quando o pior aconteceu.
Alguma coisa fria tocou a sua nuca. Gelada e ligeiramente úmida. Ela se crispou toda ante o toque e tentou se afastar e virar. Então algo rodeou sua garganta com a presteza de uma serpente. Rapidamente ficou sem fôlego, enquanto aquela coisa pegajosa se enroscava ainda mais forte logo abaixo de seu queixo.
Tentou lutar contra aquilo. Se retorceu, remexeu, tentou erguer as mãos e arranhar, mas não conseguia se livrar. Não conseguia fazer nada.
5
— O QUE FOI isso?
— Não sei. Pareceu vir dali — respondeu Beline.
Montezano tinha escutado um barulho de madeira se partindo. Continuou a manter a lanterna apoiada para a frente. A lâmpada era forte bastante para iluminar cerca de oito metros além deles.
Blocos compactos de arbustos abriam-se ocasionalmente para dar lugar a árvores maiores. Aqueles raros vislumbres de relva vazia não reduziam o terror. Em vez disso, deixava-os ainda mais assustados.
Beline podia ouvir o murmúrio ocasional de uma voz no silêncio, mas os ruídos deviam ser da ventania a remoinhar entre as árvores. E além disso, os murmúrios eram muito menos clamorosos do que o medo.
— Não estou ouvindo mais — gemeu Montezano.
— Sh. Escute.
O foco da lanterna reluziu sobre o casaco de Beline. Virando-se, as pupilas dele estreitaram-se à luz. Beline Coelho era um homem alto – e sua cabeleira abundante e ondulada fazia-o parecer mais alto ainda. Tinha lábios excessivamente sensuais e queixo rachado.
Trabalhava para o departamento policial de Sade há mais de dez anos. Podia ter abandonado esse tipo de serviço perigoso para se mudar para Santa Bárbara e abrir a loja de antigüidades que Dolores tanto sonhava. Mas se preocupava com a inflação, portanto continuava no emprego antes de jogar tudo para o alto.
Somente algumas coisas conseguiam torná-lo irrequieto quanto a largar logo a polícia – e uma dessas coisas eram as ocasiões em que tinha Montezano como parceiro. Aquele homem era insuportável. E mesmo para alguém como Beline, a paciência tinha um limite.
Carlos Montezano era um relaxado. Baixo e corpulento, não era bonito, mas tinha a mesma vasta cabeleira de Beline - aquele capacete ondulado de cabelo sobre o rosto redondo de lábios arqueados. Só que nele esses lábios eram graníticos.
Quando fazia a barba, deixava sempre uns fios espetados. Seu uniforme vivia amarrotado e as botas estavam sempre bastante pespontadas. Tinha 43 anos e ainda metia o dedo no nariz em público. E tinha aversão a tudo o que era novo ou que continha alguma novidade.
Os dois patrulheiros tinham corrido para o meio do mato desde que ouviram alguma coisa se mexendo na folhagem escura. Um ruído áspero, como o crepitar de pedras que estavam sendo movidas de seu lugar.
Embora nada houvesse de extraordinário naquilo, eles foram tomados de terror, talvez provocado por superstição ou o pressentimento de algo indecifrável e misterioso.
Agora estavam ali, perdidos e sozinhos. E cada ruído que ouviam era motivo para se mijarem de medo.
Montezano virou-se e teve tempo de notar que havia uma mancha escura de suor no ombro do parceiro, e outra descendo pelas costas de sua blusa. Notou também que a calça dele estava amarrotada, encrostada de terra marrom na altura dos joelhos e dos tornozelos. Mas o policial parecia não se importar, continuava a olhar profundamente para a frente, apavorado.
— O que acha? — perguntou.
De cara feia, Beline falou:
— Suponho que você pense em fugir daqui, como um rato numa ratoeira ― E olhou para os arbustos em redor.
O vento forte atirou grãos de areia sobre eles. Gotas de chuva começava a cair tremeluzindo no céu, Mas não era uma tempestade. Tentando elevar a voz, Montezano gritou:
— Temos que sair daqui, meu chapa
— Eu sei, mas para onde iremos?
— Para a casa do tal... vamos voltar para a casa e avisar os outros. Talvez George Loas já tenha chegado.
— Mas nós viemos de lá.
— E temos que voltar, agora.
Uma explosão queimou o céu e até as nuvens bruxulearam. As sombras rendilhadas dos arbustos saltaram como se alguma força sobrenatural estivesse misturando as formas do Universo. O primeiro relâmpago, porém passageiro.
— Pombas, Carlos, não podemos voltar para lá ― Beline, olhando diretamente para ele.
— O quê?
— Aquela coisa estava perto daquela casa.
— Mas não podemos ficar aqui. Olhe para o céu.
— Vamos procurar um abrigo.
— Um abrigo? — repetiu o patrulheiro, franzindo a testa.
— É! Uma árvore ou um rochedo.
— Porra, meu chapa, temos que voltar para aquela merda de casa.
Mesmo contra a vontade, seu instinto natural de sobrevivência assumiu o comando das ações e o colocou em movimento. Beline Coelho fez automaticamente o que era necessário. Há quase quinze anos não experimentava um comportamento primitivo como esse.
Tentou manter os olhos fixos nos arbustos para antecipar-se a qualquer movimento à sua frente. Então pela primeira vez, os ecos de suas passadas se misturaram a um inconfundível desafio. Correu com a rapidez que suas botas permitiam - vezes Montezano ia à frente, vezes ele tomava a dianteira.
Beline olhou para ambos os lados, esticando os olhos.
— Não estou enxergando nada — protestou Montezano.
— Segure a lanterna para a frente!
— Pombas, estou correndo! Não dá para fazer as duas coisas.
Arfando e respirando entre dentes, Montezano tentou erguer a lanterna. No mesmo instante, tropeçou em algo. O patrulheiro foi arremessado para a frente, caindo em cima de Coelho. Quando caiu, a lanterna escapuliu de sua mão. Ainda tentou agarrar a lanterna, mas não a alcançou. Ela caiu no chão e foi girando entre a lama para longe, atirando sombras em frenesi a cada movimento, sem focalizar nada. Ainda rodopiava pelo chão pela última vez quando colidiu de encontro ao tronco de uma árvore. A lente se estilhaçou em pedaços rombudos de vidro.
— Oh, não! — vociferou Beline furioso.
Uma nova golfada violenta de chuva jorrou sobre eles, erguendo enormes bolhas de espuma da terra lamacenta
— Está muito escuro — gritou Montezano.
Mechas de cabelo encharcado caíram-lhe sobre os olhos. Ele empurrou para o topo da cabeça, mas outra mecha despencou pesada sobre seu rosto.
— Mas que merda! Está escuro aqui! — gritou outra vez.
Talvez somente por instinto, Beline permitiu que seus olhos vagueassem pela escuridão das folhagens em torno deles e escutou um ruído molhado, de quem deslizava na lama, quase abafado pelo vento. Mas o ruído cessou tão abruptamente quanto tinha começado.
— Muito escuro, muito escuro... — continuava Montezano.
— CALE A BOCA E OUÇA!
— O quê?
— Ouça!
Era como se alguém estivesse acompanhando uma sinfonia bem baixa, percutindo ritmicamente um cano de ferro sobre os troncos das árvores. E em medida que o som ia se tornando mais alto, os dois patrulheiros fitavam com cada vez mais espanto a escuridão.
Algo continuava a se mover sorrateiramente entre os arbustos, mas aquele não era o único som que eles escutavam. Havia muitos outros ruídos, todos baixos e frágeis. O arfar de um homem cansado. Os guinchos das cigarras. A chuva entre as folhas e os galhos das árvores.
Então ouviram passos se aproximando e um vulto apareceu entre as árvores caminhando na direção deles. Tinha um cheiro pungente de sangue, iluminado terrivelmente pela fosforescência natural da noite. Segurava uma pistola e balançava-a de um lado para o outro, esbarrando nos arbustos e gritando terrivelmente.
― Oh, merda! ― gritou Montezano, acercando-se de seu parceiro
O vulto se aproximava, exalando um odor desagradável de urina. Houve o estrondo surdo de seu impacto contra um dos arbustos, espalhando água de chuva numa lufada de gotas finas.
― O QUE É AQUILO, MEU CHAPA?
Apavorado, Beline ergueu a arma. Segurando firme com as duas mãos, soltou a trave de segurança, com o dedo no gatilho mesmo enquanto levantava o cano.
O primeiro tiro arrancou um pedaço grosso de tronco numa árvore afastada – e pedaços de madeira saltaram como uma chuva de abelhas ferozes. Os três outros disparos atingiram o vulto diretamente no peito, as balas atravessaram-no. E quando saíram pelo outro lado, atiraram uma enorme mancha de sangue na escuridão.
O que quer que fosse aquilo... foi arrastando para trás, desequilibrado. Os tiros o haviam pegado de surpresa antes que ele erguesse a própria arma, que voou de entre seus dedos e bateu no chão com um estampido lutulento. Depois ele caiu no chão como uma pedra num poço, espalhando terra e lama
— Pombas, meu chapa! — exclamou Delorio num salto.
Beline Coelho tremia sem controle. A pistola começou a deslizar escorregadia de sua mão e, fora de sua percepção, o gatilho escapou de seu dedo e a arma se desprendeu, produzindo uma explosão de água e grama quando bateu no chão.
― O que iremos fazer agora?
― Vamos lá! ― respondeu Beline.
― O quê? Se aproximar daquela coisa?
― E temos outra escolha, por acaso?
Aos tropeços e com as botas afundando na terra, avançaram através dos arbustos, na direção em que o vulto sucumbiu. Ficou parado junto a uma árvore, olhando algo no chão por trás da folhagem, enquanto Carlos Montezano se aproximava pelas suas costas, rodeando rapidamente as plantas.
Rachel Furlan, a novata da 13ª Chefatura de Sade, era quem estava deitada de costas no chão. Torcia-se de dor e parecia completamente confusa. Olhava para cima com surpresa, olhos que pareciam não enxergar nada ou apenas observar um ponto inanimado.
― Oh, porra!... ― Montezano começou a falar quando a moça soltou um gemido alto e profundo, agarrando-se com as duas mãos na grama. Tinha os nós dos dedos brancos e os tendões saltavam-lhe nos lados dos braços.
— Oh, santo Deus! — balbuciou Beline, sem acreditar no que se avolumava diante de seus olhos.
6
UMA GOTA DE suor escorreu pela costela de Beline, fazendo-o estremecer. Ele virou a cabeça e tentou fixar os olhos na estrada. Mas a chuva que borrifava o pára-brisa e o intervalo dos movimentos rítmicos com que os limpadores raspavam o vidro distorciam seu campo de visão.
Em medida que a viatura subia pela faixa sinuosa do asfalto, a chuva caía como areia grossa através dos fachos de luz dos faróis do carro. Balaústres de metal pintados de amarelo sustentavam uma grade de proteção que corria ao longo da pista, quase invisível por entre as rajadas da tempestade.
Ao volante, Montezano perguntou:
— Como ela está?
Rachel estava encolhida sobre si mesma no assento traseiro do carro. A cabeça estava pendida sobre o ombro direito e ela não se moveu quando Beline a apalpou. Sangue quente e pegajoso cobria todo o lado direito de seu rosto e a testa.
Os dois patrulheiros carregaram a novata nos ombros por toda a mata até a casa de campo do Sr. Âmago. Beline a depositava na viatura enquanto Montezano ia até a casa procurar por Cunha e Loas. Mas sua busca não teve resultado. A casa estava vazia e silenciosa – e até mesmo o corpo de Marcos Âmago que antes estava no centro da sala havia desaparecido. Tudo bem, era estranho... Mas o fato de estar com Rachel ferida lá fora representava uma urgência tamanha para se prender a tais detalhes (por mais terríveis que eles parecessem)
Com os dedos trêmulos, Beline tateou os lábios da policial e suspirou aliviado ao sentir o hálito morno que passava por entre seus dentes semicerrados.
— Ela está inconsciente, mas não morta — segredou ele.
Montezano por sua vez parecia submerso em outra linha de pensamento.
— Não acha isso tudo muito estranho? ― perguntou para o parceiro, sem desgrudar os olhos da estrada.
— Está falando sobre Cunha e Loas terem desaparecido?
— É. E Rachel ter aparecido daquele jeito.
— Não sei.
— Alguma coisa aconteceu naquela casa, meu chapa. Eu sinto isso.
Com as luzes vermelhas da sirene rebrilhando no teto, a viatura a estrada enterrando-se entre as montanhas cobertas pela noite, na direção dos rochedos onde o luar rareava. Constantemente o acostamento da estrada tornava-se quase violeta, tingido pelas luzes giratórias no alto do carro de polícia.
Passaram por um pequeno campo atulhado de capim queimado e por algumas moitas e arbustos com raízes suficientemente profundas.
— Não posso acreditar que atirei nela — murmurou Beline Coelho, respirando profundamente entre os lábios entreabertos.
— Ora, não se importe. Só faça direito da próxima vez ― O nojento riu como se tivesse dito uma coisa insuportavelmente engraçada.
— Você nunca deixa de me espantar, sabia?
— Qual o problema?
— Nenhum. Esqueça!
Um novo relâmpago cortou o céu, menos potente que o primeiro. Carlos franziu a testa e olhou pela janela. Chuva fina espiralou contra o vidro, parou no ar, enquanto o vento tomava fôlego – e espiralou mais uma vez. Praguejando por entre dentes, mas sem perder a calma, ele retirou o pé do freio, para não derrapar. Começou a desviar o carro para a última pista à sua direita.
Beline estava certo de que aqueles relâmpagos impossíveis tinham um significado especial para ele. Um sinal, um pressentimento. Tolice. Mas a sensação persistiu quando olhou para trás, para Rachel no assento traseiro...
— Oh, droga, DROGA! O QUE ESTÁ ACONTECENDO COM ELA?
Os pneus mastigaram violentamente o asfalto. A viatura derrapou, levantando uma névoa de lama do asfalto. Parecendo acordar daquele estado de semiconsciência, Rachel tossiu, golfando sangue sobre o próprio peito – depois expirou profunda e dolorosamente.
— O que ela tem? Oh, Cristo Jesus! — insistiu Beline.
A novata fez uma outra careta. Torcia-se de dor e parecia totalmente confusa. De súbito, soltou um gemido alto e profundo de arrepiar os cabelos, agarrando-se com as duas mãos na borda da poltrona. Tentou endireitar-se apoiada ao assento, mas não conseguiu e emborcou outra vez. Já não podia controlar o corpo, tinha os olhos esbugalhados e a testa recortada por traços firmes de dor.
— A CAMISA! — gritou Beline paralisado, apontando para o peito de Rachel. ― DEUS DO CÉU, A CAMISA DELA!
Uma grande mancha vermelha aparecera no uniforme da policial – e alargava-se rapidamente, tornando-se um vasto borrão irregular que já lhe cobria todo o tórax.
— Oh, droga, droga, droga... — murmurou Montezano, quase perdendo a direção da viatura.
A traseira da viatura foi se desviando para a direita – e ele sentiu que se afastava cada vez mais do asfalto. Aquele movimento deslizante, escorregadio e fora de domínio acabou se transformando num vertiginoso rodopio. Beline sentiu seu estômago se contrair e embora estivesse preso pelo cinto de segurança, ergueu instintivamente a mão esquerda para se apoiar no painel, enquanto a direita agarrava a porta em busca de firmeza.
— SEGURE-SE! — gritou Montezano, girando o volante na direção em que o carro pendia, na esperança de recuperar o controle.
E então o pára-choque dianteiro do lado de Beline chocou-se contra a balaustrada de proteção da pista. Ouviu-se o clangor de ferro contra ferro, enquanto o carro ia raspando no gradil e erguendo no ar uma nuvem de fagulhas coloridas. O cinto de segurança que o prendia diagonalmente, apertou-o com tamanha força que todo o ar que tinha nos pulmões foi expelido bruscamente.
— Estou perdendo o controle... — gritou Montezano.
Sua voz estava rouca e perante a cacofonia que acompanhava a derrapagem, sentia-se meio surdo também.
— OH, PUTA MERDA! — resfolegou Beline, olhando atônito para o banco de trás. — MERDA, MERDA... OLHE PARA RACHEL!
Ela estava horrível. Parecia ter dobrado de tamanho e sua aparência original ter sido transformada numa expansão disforme de tecidos esponjosos e translúcidos. Parecia brilhar com uma repulsiva luz interior, enquanto os vasos sangüíneos inflavam e contraíam, como criaturas lutulentas caminhando lentamente por baixo de sua pele. Os músculos inchados faziam uma pressão assustadora contra o uniforme dela, começando a arrebentar em alguns pontos da costura. Definitivamente não havia nada de remotamente humano na coisa intumescida e gelatinosa que pulsava umidamente diante deles.
Montezano gritou, mas o som não escapou de sua garganta, porque uma mão gélida flutuou e se fechou em torno de sua boca.