Numa de suas visitas, contou-me o diabo um caso hilário: Acompanhara admirado a vida torta de Juliano Gauche – maldito homem e poeta, filho bastardo do simbolismo, nascido em tempos modernos. Deu uma risadinha e prosseguiu: - Sabe, esse rapaz prematuramente descobriu a morte, a ira. O consolo somente nessa. A prosa fúnebre que tanto idolatrava não lhe valeu de meio, quando exasperado expressou-se no funeral da mãe.
Sem demora abandonou a poética e tornou-se um marginal, sombrio, nulo por vontade, porém sem coragem de apagar-se por completo. Sua morte banal – afinal, quem choraria o suicídio de mais um indigente? – não valia a investida, e no fundo ainda guardava a esperança de superar a carapaça medíocre que erroneamente lhe conferiram. Sim, era um exibicionista – por carência de elogios – dúbio e sensível, assim ao meu gosto, inquietante e deliciosamente salpicado por ocasionais clamores. Soubesse ele que nutria o seu rancor com tais expectativas...
Aos vinte e cinco cometeu o primeiro homicídio, procedido por leve e ligeiro remorso. Era fim de tarde e eu o assistia atento: tomava a terceira saideira no bar do Josué quando foi agredido pelo amigo Dutra, que, porventura, era casado com a sua amante, Cida.
Gauche, incapaz de admitir a derrota, saiu atordoado, com os olhos vermelhos da cor daquela tarde. Revirou todas as gavetas de sua casa e, assim que encontrou a arma, saiu a caça do filho da puta que intentara arruinar a sua honra. Sem pestanejar deu três tiros na cara do cabra e assumiu-se monstro. Não se apiedou do cadáver desfigurado a que transformara o amigo, outrora tão expressivo. Passo por passo vagaroso – calmos e não graves –, saiu andando sem qualquer vestígio de culpa, tanto sobressaia o gozo da vingança. Quando chegou em casa chorou uma única lágrima, para nunca mais.
A guinada tornou-o um verdadeiro bruto. Aceitou-se assim. Enfim. Vislumbrou por trás da curva um caminho retilíneo e fê-lo indolente, gratuitamente violento e desnecessário. Adivinhe onde foi dar? A vida do moço surpreendeu-nos com outra curva quando completou trinta anos.
Na ocasião festejava com três de suas raparigas que, por respeito, cediam as gordas ancas para os seus carinhos. Era um desajeitado com as mulheres, muito ávido e por conseqüência incompatível com os desejos femininos. Despia a última puta quando arrombaram a porta dois capangas a mando de Armando Bonfim e, conforme o ordenado, meteram balas sem antes dizer palavra. Saíram também mudos.
Cinco minutos depois despertou. Cuidavam-lhe os ferimentos do raspão, as putas; pois que, apavorados os bandidos, sequer constataram a morte do infeliz, felicitado por suas miras nervosas. Grato pela caridade das senhoras, recompensou-as com dinheiro e efusivos abraços – depois de tantas injúrias como poderiam aquelas oferecer ajuda? Refletimos nós. Para meu descontentamento, o gesto de misericórdia infundiu-lhe novamente a perdida humanidade, e ele renovado aspirou a candura celestial. Deixou todos os bens para usar como bem entendessem as amigas, de preferência com doações, e apenas com as vestes trajadas seguiu em peregrinação até aonde sua serventia fosse mais nobre.
Juliano Gauche foi parar no interior de Minas Gerais. Volveu da cartola a pena mágica e, nos intervalos de seu ofício, descreveu o comportamento e as cenas locais. Os textos foram se avolumando em sua gaveta, embora o trabalho fosse severo: acordava cedo, respirava o ar puro com gana, até que lhe ardessem as ventas, e ia para o campo tirar o leite das vacas, tratar dos bezerros, lavrar a terra, e colher café. Assim cumpriu o manual da vida por meses.
Já se habituara à vida simples e austera, quando na noite fatídica declarou-se a Julinha. Conhecera-a quando a jovenzinha, então palpitante, na flor da adolescência, com peitinhos semimaduros e coxas tenras, viera trazer café para o velho pai. Todos as tardes vinha ela desfilando pelo cafezal, vestida em seu lençol diáfano. Gauche apreciava gananciosamente a filha do amigo, mas nunca alavancara a conversa além dos tímidos obrigados, quando essa lhe servia. Porém, naquela noite, um tanto menos acanhado após as tantas doses de cachaça, ofereceu o madrigal composto para ela no dia em que a viu pela primeira vez.
Gauche viu a face da menina enrubescer. Estava ainda mais bela.
Julinha, lisonjeada, e ao mesmo tempo acanhadíssima, leu e releu o poema, então sem outro ponto para mirar o olhar embaraçado. Por um instante observou Juliano, e depois se desprendeu, atropelando os obstáculos que lhe interrompiam a pressa pelo distante.
– O que quis com o disparate? – perguntei ao moço.
– Queria simplesmente salvar-se de minhas garras idosas ou esperará por mim num local escondido? – perguntou-se.
– Vá Gauche, segue a sua sorte!
Então o velho com alma de rapazote seguiu-a, mas em muito atrasado, já cego pela escuridão e desanimado do reencontro, avistou-me personificado em um enxame de seres luminescentes. Um vale de vaga-lumes, criação magnífica! Assim forneci a claridade necessária para que achasse Júlia, e a cena romântica. Não creia que distorci a narrativa pelo meu entusiasmo, compreenda que também sou luz, e afeiçoei-me ao casalzinho.
Bem, Juliano Gauche, calado, sentou-se ao lado da senhorita e inclinou-se vagarosamente rumando os seus lábios, porém, antes de atingi-los, foi interrompido. Um empurrão... e ele na margem do precipício.
– Ela quer meu caro, ela quer, só finge que não por ingenuidade. O coitado creditando minhas palavras puxou contra seu corpo a menina e roubou-lhe um beijo amargo.
– Ela quer, só precisa de sua tenacidade para que assuma, ouça-me.
Ouviu-me e iniciou o estupro apalpando os peitinhos que tanto desejara. Prendeu os braços da menina com uma das mãos e, com a outra, arrancou seu leve vestido. Depois a deitou e, sobre ela, o seu peso. Abocanhava seu pescoço quando foi vitimado por um tiro na testa.
O pai ciumento e amigo desconfiado, Antônio Gonzaga, preocupado com a fuga da filha, partiu em seu encalço. Deparando-se com a cena sacou a arma e acertou a cabeça do crápula que tão afavelmente recolhera em suas terras.
Foi engraçadíssima a expressão de pavor que lhe desfigurou o rosto quando soube estar condenado por toda a eternidade em meu recinto. Chamou por Deus dias inteiros, e ele sequer enviou-lhe o anjo mais baixo para acalmá-lo. Foi então,que me insurgiu a idéia, que eu necessitava de desafios e a maldade crua já não mais me contentava: ofereci-lhe a chance de nascer outra vez, do mesmo ventre, inserido no mesmo contexto, porém sem lembrança alguma, pois que as suas escolhas novamente deveriam ser as delineadoras do seu breve percurso pela Terra. Ele de bom grado aceitou o convite.
No dia vinte cinco de agosto nasceu novamente o menino Juliano Gauche. Inata a sua sensibilidade. Por volta dos três anos ganhou o leão que guardou seus sonhos, inclusive os oníricos flashes do passado. Aos dez guardou o animal no armário. Aos treze descobriu novamente o amor platônico por Cidinha, e aos dezesseis reconheceu-se em Rimbaud. E quis o século XIX, e teceu as mesmas expectativas, e viveu as mesmas experiências – a trágica morte da mãe que acarretou em seu hiato. Que para um garoto acostumado a todas as noites dormir acalentado por estórias maternas, dormir solitário fora uma experiência traumática. Teve de amadurecer na marra ao saber-se desprotegido, duas vezes que no velório todos confrangidos pela própria dor foram incapazes de cuidá-lo. Desenvolveu a sombra adormecida, escolheu o marginal, culminando quando aos vinte e cinco anos atentou contra a vida do amigo, num crime passional. Assumiu-se. A mesma esperança da juventude, quando soube – vã – já na idade avançada em que cometera os pecados hediondos, fê-lo novamente bruto. Como me foi agradável.
Novamente revelou sua bondade quando cuidado por suas putas, novamente seguiu para o campo e novamente foi morto intentando estuprar o seu maior amor. Fatalista, não? Eu, também, novamente ofertei-lhe o retorno à vida, e ele novamente aceitou satisfeito. Até hoje rio de sua desgraça eterna. Olhe pela janela. Juliano Gauche é aquele menino que agora vai tropeçar no desnível da calçada. Já até decorei seus passos.
A. Lacruz