
Não é difícil enxergar incoerências entra a figura emblemática do tropicalismo, o tímido espalhafatoso Caetano Veloso, que introjetou na música popular brasileira o gérmen da vanguarda e, por conseguinte revolucionou sua linguagem, e o espalhafatosamente tímido Caetano Veloso, arrependido das intervenções polêmicas a que tantas vezes se dispôs diante dos assuntos da moda, com seus olhinhos infantis sem a malícia do bandido, em trajes puídos e uma aparência encurvada, a implorar clemência ao fim de cada canção, ofuscado pela banda competente com quem confeccionou o disco Cê.
- Deus está morto - afirmei a quem quisesse após seu último show em vitória – o meu primeiro, e talvez o derradeiro – em que apresentou o disco recém inaugurado. Não sei ao certo o ponto exato da transfiguração em que o Caetano mítico transformou-se em deus empedernido, a mudança foi gradativa e pouco a pouco meu mestre, que é um instrumento sensível às variações do tempo e por isso não poderia passar incólume aos anos 80 e 90 e toda a deterioração do sublime e do sonho revolucionário que acarretaram, perdeu sua capacidade de contagiar a alma, ao menos a minha - embora neste período tenha composto obras como “ele me deu um beijo na boca”, “trem das cores”, “o quereres”, “vaca profana”, entre outras.
Seria injusto exigir que Caetano se mantivesse fiel à estética que o consagrou, até por que esta sempre foi mutante. O problema é ver seu esgotamento. Naquela noite, derrotado, admiti que Caetano envelhecera, o tempo tem desses reveses cruéis. O mesmo princípio pode ser aplicado aos Rolling Stones, a Paul Mccartney e a muitos outros que viraram lenda sem morte precoce no ápice da carreira. Mas não se aplica a Tom Zé, que dias depois me provou que era possível envelhecer com vigor artístico.
Eu esperava ansiosamente pelo show onde todo o mundo poderia brilhar num cântico, ver revelado o jeito da Bahia que afetaria toda a gente do mundo em um momento puro de amor, mas no palco um Caetano transvertido em David Byrne demolia minhas ilusões. Sua boca tremia constantemente em vibratos inconvenientes, e eu me via carrasco do meu maior ídolo, primeiro com expressão triste, depois com zombaria ao vê-lo se aproximar da platéia em passos tímidos, e era incontida a gargalhada quando, no momento de sua maior euforia, dava uns pulinhos. Voltei para casa ultrajado.
Há quem diga que no disco Cê a ousadia de Caetano se reafirma. Concordo que a prosa do poeta se mostra madura, e a idéia de substituir a orquestra de batuques, que deu o tom de seus últimos discos, pelo trio de músicos talentosos, tange seu velhos ideais, mas não o suficiente para tornar o disco arrebatador, como os que antes sabia fazer com tanta naturalidade.
Caetano é um ser para arte, com referências múltiplas que misturadas dão origem a uma obra conceitual nunca antes vista no Brasil em forma de música. E ser referência no Brasil que é por excelência um berço da boa música é para poucos!
Ele não é o único, mas sem dúvida é um dos gênios que conseguiram transfigurar o gênero em um perfume que intoxica, uma experiência visceral que por vezes se materializa de maneira etérea, mas com força suficiente para agarrar pelo pescoço e arremessar pela janela, cadenciar os passos rumo ao amor livre e à liberdade incondicional enquanto meta.
Com a sensibilidade e competência para as múltiplas possibilidades de verter a arte, sua obra é marcadamente plural: artes plásticas, cinema, literatura, filosofia, afetos e desafetos, e também música, com influências que vão do fado ao rock’n roll, da moda de viola à música experimental, da bossa à jovem guarda, da anticanção sobre o sexo sem compromisso à canção de amor à flor da pele, tudo isso fundido sob um mesmo signo. Sem falar de sua capacidade como interprete. Havia me esquecido do teatro, fica para um próximo texto...
Quando ouço Qualquer coisa, ou Jóia, ou o disco branco de 69, ou o Transa, enfim, alguns dos seus discos embalam-me numa nostalgia de algo que embora não tenha vivido, sei que participo – sinto – ao menos enquanto dura a execução das faixas, cada qual com seu transe particular em que, por mais estranho que pareça, reconheço a força estranha, o pulso primordial que dá o ritmo certo à existência, onde a vida enxerga a beleza latente, às vezes de maneira efusiva, com tremeliques e um sorriso imenso, outras vezes recolhido no espaço e no tempo, sentindo coagular o jorro da noite sangrenta, celebrando o nascimento da paixão com um vinho vício desde o início, ou chorando o fim do amor com uma releitura de “Acontece”.
É quando eu percebo que deus sobrevive.