
Poderia dizer que vi Deus. Como “ver a vó pela greta”. Maneira de dizer “me assustei, mas estava seguro”, pensando sem pudores, imaginando que a greta seja a do banheiro e a velha a banhar-se lá dentro, espectral. Mas eu não vi minha vó, esta que bem viva está graças a esse, esse sim, que eu vi. Eu vi Deus, pela greta. Ele não falou, como veremos adiante e não vou adiantar aqui, ainda. Não pretenderia dizer-lhes que isso seja verdade, embora eu tenha mesmo visto, e pela greta. E tenha ficado assustado, ainda que em segurança.
Não foi essa a primeira vez, mas a mais contundente. E tendo visto Deus, temo que isto os desaponte, não sei sequer dizer com o que ele se parece. Tampouco consegui entender do que via, além de quem era. A física quântica que me acompanhe e não me creia, ou sim, porque aqui não pretendo exigir a ninguém fé em coisa alguma, que sei que a uns a fé lhes vale por um caminho, e a outros por um diverso, mas desconheço quem tendo alguma real fé, com perdão do pleonasmo ou do paradoxo se o foi, juntar fé e real na mesma oração, a fé não lhe tenha valido.
Deus é como um olho. Isto não alcança ser uma exata descrição, nisso ninguém podendo discordar, porque um olho não ouve, e Deus ouve. E para não poupar o exercício de descrever, um a um, sentido por sentido existente nele – e, por conseguinte, em nós, dado ele ser a nossa imagem e semelhança, ou, como pareceria mais respeitoso: nos à dele – vamos aos meandros e estratagemas da língua, sem rodeios. Ou com.
Deus é um olho que ouve e fala. É sabido que fala tanto a língua dos homens como qualquer outra com absoluta fluência. Se certificados de proficiência fossem emitidos nas esferas celestiais, Deus seria o órgão emissor, o que nos deixa seguros de que, num jogo de acentos e entonações, com palavras parecidas e sentidos diferentes, e sendo mestre poliglota em interpretação de texto, Deus não é como as mulheres, não confundindo jamais tristeza com desamor, tédio com desamor, raiva com desamor e todas as outras coisas a que as mulheres são dadas a confundir com desamor, incluindo aí as boas coisas, tantas que se me atrevesse a listá-las aqui todas, ocuparia até a ultima fibra dessa página que escrevo à mão e à luz de velas, e me faltaria papel.
Chegamos até aqui: Deus é um olho que ouve e fala. Uma dúvida existente, de homens para divindade, sendo uns a imagem do outro, é se Ele sente. Não sabemos se o tato, material e físico que é, é sentido digno de outras esferas que não a nossa terrestre. Mesmo não sendo douto em judaísmo, ainda que conheça o Pentateuco, não me recordo de uma passagem que aludisse a isso ou isso dissesse. Deus escorregou seus dedos suavemente pela face do filho, sentindo se lhe eriçarem os pelos, de medo e susto. Isso jamais li e deixo que paire a dúvida e fique clara minha ignorância.
Um olho que ouve e fala, que não sabemos se sente, isso é Deus. Um olho que também sabe. Deus tudo sabe, diz-se desde sempre. E se Deus sabe, sabendo nós também que nada lhe escapa aos desígnios, Deus planeja.
Quando colocamos assim desta forma, outra incongruência surge na linha natural dos pensamentos, esta muito mais difícil de rematar: Se Deus planeja e sabe, sabe que o plano “é”, assim, portanto, planejar seria dispensável, já que os resultados são por ele sabidos desde antes do plano se executar. Rezam certos relatos dos judeus que Deus planejou, promoveu e executou diversos planos desde os tempos imemoriais, desde a arca, desde Sodoma, desde Babel, desde o grande templo de Jerusalém, Deus meteu a mão na massa pra fazer, o que em verdade, sendo ele o principio, meio e fim, já estava feito. E se Deus planeja e faz, eis que me encontro na encruzilhada: algo tenho eu que ver com isso, uma vez que aqui estou eu e não lá, que eu existo, que eu nasci, entre tão poucos se nos compararmos às abelhas por exemplo. E faço parte do plano que, mesmo estando neste exato momento em andamento, de forma incompreensível pra mim, já se concluiu. Agora mesmo, nesse instante em que nada fiz, já fiz aquilo pelo que fui enviado e gozo do mérito ou da desgraça do mesmo, lá dentro da consciência de Deus, no futuro que a ele pertence e a nós apetece. O tempo não existe pra ele. Não existe o estar, apenas o ser.
E foi aí, numa curva de raciocínio, que vi Deus, pela greta. Ele permitiu a uma alma, sabe-se lá que tipo, que não se identificou, soprar reminiscências de meu passado, guardadas no fundo do baú de um sonho da infância, aos ouvidos de meu amor. E como se não bastasse me assustar, com nomes e datas, me revelou em claras e simples demonstrações que eu nada sei do que me foi dado a passar e concluir aqui. E se mostrando a mim, mais fora de meu alcance ficou, agora que o vi e sequer posso descrevê-lo. Antes eu sabia Deus quem era, agora que o vi, já não sei. O fato é, inacreditavelmente, não sei porque divido isso com vocês, eu vi Deus pela greta. E me assustei. A física quântica que me acompanhe, e não me creia; ou sim.